Poesia & textos afins
Três histórias
Na casa da senhora baronesa só há produtos de marca. De marca é a roupa, o calçado, os chapéus, as malas. Os cães. A água com que os criados de marca regam. Regam as flores de marca da senhora baronesa.
*
Nela tudo excessivo. E
o que ao começo era mania, mera mania das grandezas, com o tempo virou
realidade. Um dia tropeçou, caiu na cova. Na cova de um dente.
É o que dá andar a
passear às escuras.
*
Quando salta faísca e
tudo se incendeia, nasce a paixão.
Com ele foi assim. No
amor. E na vida profissional: bombeiro.
Augusto Baptista (n.1946)
Autor de contos, "enigmas", fotografia e desenho. Últimos livros publicados: explicação dos gatos com figuras de tangram (2016), ENIgMATÓgRAFO (2016, 2.ª ed.), Gente do Porto (2017), O Lobo Mau no Hospital (2017) e Lacrima (2019). Publicado em 21-7-2021.
Mulher de branco no jardim de Claude Monet (1867)
Aceita a solidão que te oferecem...
Aceita a solidão que te oferecem
Como um vaso sagrado
Aí mergulha fundo a raiz
Colhe a flor se o silêncio florir
Ou antes
Não a colhas
Deixa-a frutificar
Manuel Silva-Terra (n. 1955)
Poeta, tradutor, editor. Últimos títulos publicados: Ser Casa, 2017; Medula, 2019; Hölderlin, 2021. Publicado em 1-6-2021.
Office in a Small City de Edward Hopper (1953)
Só um punhado de areia...
Só um punhado de areia
nas mãos clepsidra
incessante
fuga calada
do tempo
Lisboa, 1 de Janeiro de 2018
Bernardette Capelo
Autora de Ce que mon coeur sait de la semence / O que meu coração sabe da semente (poesia), 2014; Escrito a roxo (conto para a infância), 2017; e também de ensaios: Arte e Natureza na obra de Albano Martins, 2015, entre outros. Publicado em 7-5-2021.
Clepsidra de Vasile Grigore
A cântaros
Ameaça
de chuva
Sem
sinal de chuva
Chuva
miúda
Chuva
ligeira
Chuva
fina
Chuva
grossa
Aguaceiros
dispersos
Chuva
forte
Chuva
fustigante
Chuva
intermitente
Chuva
abundante
Raros
chuviscos
Chuva
constante
Chuva
contínua
Chuva
torrencial
Chuvadas
curtas
Chuvadas
breves
Chuva insistente
Chuva
persistente
Chuva
intensa
Chuva
violenta
Chuvada
súbita
Um
pouco mais de chuva
Chuva
molha-todos
Não
choveu, embora por várias vezes parecesse que ia chover.
Ana Cláudia Santos (n. 1984)
Tem-se dedicado à escrita e à tradução de autores como Vico e Leopardi. Doutorada em Teoria da Literatura, exerce actividade profissional como editora numa instituição universitária. Publicado em 14-4-2021.
Rua de Paris; dia de chuva de Gustave Caillebotte (1877)
Os gatos filosofam junto ao aquecedor...
Os gatos filosofam junto ao aquecedor,De olhos fechados pensam o infinitoTranquilamenteComo quem não espera mais nadaDo que o paté e os afagos do dono.La fora o ventoA memória de antigos poemasE de noites tempestuosas,O meu pai recém-chegado da pescaCom o seu velho casacão marítimoOs olhos ainda cheios de marE de noite.Dói-me o corpo.Amanhã será mais um dia de pandemia.Que fazer? Que fazer, Vladimir Ilich Ulianov?Há muitos anos numa primavera antiga como o mundoA Vida Mundial sobre a mesa:Uma crítica cinematográfica ao Requiem por um Rei VirgemDo Hans-Jürgen Syberberg,Expressionismo, Murnau, Pabst, Wiene, O Gabinete do Doutor Caligari.Como tudo passa. Relembro uma tarde em que liOs Espectros do Ibsen ao som da "Rain Song" dos Zeppelin.Tantas memórias, tantos fantasmas.
Penso nela na sua nova casa no seu espanto renovadoDe quem está a descobrir o mundo.As utopias sempre inalcançáveis como a nossa própriaSombra.Tal como ela eu também olhava com espanto há muitos anosNas tardes da eternidade para um mundo imensoQuando todos eram vivos e a morteUma palavra nas bocas de Soares de Passos e de Ferré.
Olho em volta, preciso de uma aspirina urgente,Tenho a conta a descoberto.Tal como a minha cama desfeita pelos gatosOnde um corpo antigo subitamente ainda repousa numa outra vidaSempre nu, sempre jovem,De falsa rapariga ingénua a falar de coisas falsamente ingénuas.Como os textos de Vercors e os cigarros SG gigante,Como aquela manhã de névoas em que partiu falsamente constrangidaPara nenhures. Um comboio com o cadáver do Brian Jones na mala de viagem.Amanhã sempre amanhã. Tomorrow and tomorrow and tomorrowOut out brief candle!Onde estará o abade da Igreja de Nossa Senhora da Conceição?Em que cemitério apodrece esse comedor de lampreias?Passou o vento, os gatos olham-me agoraCom os seus olhos egípcios de divindadesDesterradasE neles vejo os tempos e os espaços que nunca entendi.A eternidade é de certeza uma chatice,A cantilena dos anjos,O bocejo de DeusCheio de gota quase surdo,Indiferente à gritariaDo universo, aos gemidos de Auschwitz.Sim, passou o vento do oeste,Shelley continua a arder na pira funeráriaEm la Spezia.O meu pai desapareceu mais o seu casacão de pescaE as galochas da cor da noite. O meu pai e a minha mãeMais os seus salmos do rei David ao som das trindades.Ela continuará falandoNa distância do telefone diante de um rio que já foi meu,Enquanto a pandemia vai alastrandoE os gatos no seu romantismo negro e góticoEspreguiçando-se lentamente e acordandoDo seu sono profundo e entrópico,Enquanto lentamente se vão desmoronandoAs pirâmides do Egipto.
11-12-2020, 3 h da manhã
José Soares Martins (n. 1953)
Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020). Tem para publicação Ruínas e Bastiões (2021) e é autor de obras na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 24-3-2021.
Procura 2, de Miguel Cameira
A ternura de uma pedra
Extraio ternura de uma pedra,
raul brandão
As pedras não criam bicho: são quase sempre estéreis.
Já vi no entanto uma pedra parir em doise exibir inerteum pequeno coração húmidoacabado de morrer.
Mas é tão rarosobreviver a cria ao rigor do parto
como resistir à doçurado olhar maternode uma pedra,à ternura do hálitoda medusa?
Rita Taborda Duarte (n. 1973)
Poeta, crítica literária e autora de obra vasta e premiada, na área da escrita para a infância, desde A Verdadeira História de Alice (2004) até Um Hotel de Imensas Estrelas (2019). Últimos títulos de poesia editados: Roturas e Ligamentos (2015) e As Orelhas de Karenin (2019), finalista do Prémio Literário Correntes d'Escritas 2021. Publicado em 8-3-2021. Dia Internacional da Mulher.
Nascimento do Mundo de Joan Miró (1925)
Bagatela
Arranjou um biscate como cliente mistério numa empresa internacional de pagamentos. Tinha de testar três tipos de cartões bancários em trezentas lojas, fazendo em cada uma três compras, e medindo num aparelho que lhe fora fornecido o tempo que cada transacção levava a ser feita. Em cada loja tinha 20 euros para gastar; se gastasse cinco, os 15 restantes ficavam para ele. As coisas também ficavam para ele, e era assim que era pago. Fazendo sempre por comprar as coisas mais baratas, acumulou sacos de bagatelas. No dia em que terminou a tarefa, dispôs no chão da sala tudo o que adquirira. Havia sabonetes, esponjas de banho, velas, colheres de pau, copos, canecas, porta-chaves, molduras, cigarros, embalagens de chá, de massa e de cereais, brinquedos para gato, lenços de pescoço, camisolas, meias, cintos, cartas de jogar, fita métrica de costura, alfinetes, furador, agrafador, lápis de cor, canetas Staedtler de ponta fina made in Germany, cadernos, livros. Uma caixa de cotonetes caiu-lhe das mãos e abriu-se, dispersando no chão os pauzinhos algodoados como peças de Mikado. Fotografou a sala para se lembrar de todas as coisas que comprara e daquele trabalho tão bem pago e misterioso. Na fotografia, o gato fita-o, perplexo, como se não soubesse por onde começar. Ainda tem algumas das coisas, mas já não tem o gato.
01/02/2021
Ana Cláudia Santos (n. 1984)
Tem-se dedicado à escrita e à tradução de autores como Vico e Leopardi. Doutorada em Teoria da Literatura, tem exercido atividade profissional como editora numa instituição universitária. Publicado em 12-2-2021.
Charles Robinson, ilustração de Alice's Adventures in Wonderland, de Lewis Carroll (1907)
As aves têm razão de João Mateus (2012)
História: as aves têm razão
Leitura do quadro de João Mateus "As aves têm razão",
série "Estórias sem palavras", 2012
Equação:uma escada, um monumentoum túmulo.O homem carrega o mundopara subir altono pedestal o que sobraé a caixa do sonoeterno
as aves nãopara morar só querema liberdade livredo azul.
Lisboa, 19-10-2015
Bernardette Capelo
Autora de Ce que mon coeur sait de la semence / O que meu coração sabe da semente (poesia), 2014; Escrito a roxo (conto para a infância), 2017; e também de ensaios: Arte e Natureza na obra de Albano Martins, 2015, entre outros. Publicado em 18-1-2021.
Três haikus de Ryôkan
Ah se todo o diaeu me sentisse tão bemcomo quando saio do banho.▪Uma calma perfeitanuma almofada de ervalonge da minha cabana.▪O ladrão levou tudo,excepto a lua que estava na minha janela.
Ryôkan (1758-1831)
Poeta, calígrafo e monge budista-zen japonês. Haikus traduzidos por João Pedro Mésseder a partir do Francês, e incluídos em Paroles du Japon, Albin Michel, 1997 (selecção e tradução de Jean-Hugues Malineau).
Publicado em 1-1-2021.
Aguarela japonesa
A palavra
Se não houvesse Natalnestes tempos doentios,se o nosso sonho de Invernose quedasse assim vazio,que fria seria a estação -entraria em nós o ventode gume acerado cortandoa raiz do coração.
Mas corrido um ano maiseis que o Natal aí estácom suas barbas compridase com ele chega a noitee com ela a estrela-guia,chegam pastores e Reis-Magos,gestos sem sombra, memóriasde um certo rosto perdido...
Que a eterna criança chegouaos homens trazendo a palavra- em dias de medo do fime de esperança interrompida -,a palavra sem usuraque é liturgia da vida,da verdade, da justiça, da fraternidade vivida.
Dezembro, 2020
João Pedro Mésseder (n. 1957)
Autor de Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética, 2006, A Doença das Cores seguido de Ilhas de Deus, 2016, E Nele Todo o Sangue se Concentra, 2018, e Companhia (I)limitada, 2020, entre outros. Publicado em 18-12-2020.
Profeta Isaías (det.) 1969 de Marc Chagall. Museu Nacional da Mensagem Bíblica, Nice (França)
Diante do mar recordo o teu rosto...
Diante do mar recordo o teu rostoOs teus cabelos ruivos num dia de chuva.Juramos que nos voltaríamos a encontrar Depois da morteNesta mesma praia agora desertaBatida pelos ventos do norte.Onde estão todos? Onde estão aqueles que conspiravam Na sombra dos quartéisLendo Marx e Sartre às escondidasAspirando pelo dia da grande revolução?Onde estás tu?Li a tua última carta numa tarde da eternidadeDizias-te em Boston com um novo namoradoDa idade do Ferlinghetti.Recordo-te naquele dia de chuva Em que debaixo de um aguaceiroCantámos venturososA Serenata à Chuva nas ruas então desertas Como agora. Se ainda fores vivaQue dirás tu do Trump?E da pandemia que te assola o país?E das ruas desertas de Boston?Ainda tenho comigo A edição inglesa do Jogo das Contas de VidroDo Herman Hesse. Ainda tenho comigoAs tuas fotografias de túnica laranja E flores no cabelo.Ainda me lembro Das rigorosas dietas vegetarianas Com que me querias converterAo perfume de WoodstockE aos bolinhos dos Hare Krishna em Avinhão.Agora só o vento atravessa Estas ruas por onde andámos um diaA sonhar com revoluções E barricadas de poemas.Todos morreram já, Bendsy.Todos, até aquela comunidadePlanetária que nós vislumbrávamosEm McLuhan em Marcuse ou Alan Watts.Que aconteceu? Nem a voz dos deuses Nos consegue despertarDeste pesadelo.
28 de Junho de 2020
José Soares Martins
Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado a 07/12/2020
Monge à Beira-mar de Caspar David Friedrich (1810)
Dia Universal dos Direitos da Criança
Em louvor das crianças
Eugénio de Andrade (1923-2005),
Rosto
Precário, Porto: Limiar, 1979, Publicado em 20-11-2020.
"Liberdade" de Inês Pinto (12 anos)
"Uma borboleta" de Mia Sá Guimarães (9 anos)
Três poemas
outono
como a tantas outras árvoresao diospireiro caem as folhas
ficam os ramos despidoscom os frutos pendentese redondospingando mel
sol de outono
declina madurogota a gotacai levemente
inclina-se na tardejunto dos ramosperfumados das videiras
mulher-bonsai
em sapatos pequenoscrescecom os pés apertadosas raízes podadas
Manuel Silva-Terra (n. 1955)
Poeta, tradutor, editor. Últimos títulos publicados: Canto Chão, 2016; Ser Casa, 2017; Medula, 2019. Publicado em 10-11-2020.
Outono de José Malhoa (1918)
Conselhos a um octogenário deprimido
Na medida do possível, procure espairecer, arejar. Não se feche. Devagarinho, contemplativo, deambule, ande. Faça exercício. Passe os olhos pelas ancas das passantes em passeios demorados, desça e suba devagar os bustos intumescidos das teenagers (tenha cuidado para não escorregar) e espraie-se nos ventres descobertos das senhoras de meia-idade, a exibirem atrevidas tatuagens: bando de passarinhos a debicar-lhes o umbigo. Ou mais abaixo. Depois descanse, para não forçar o coração.
Augusto Baptista (n.1946)
Autor de contos, "enigmas", fotografia e desenho. Últimos livros publicados: explicação dos gatos com figuras de tangram (2016), ENIgMATÓgRAFO (2016, 2.ª ed.), Gente do Porto (2017), O Lobo Mau no Hospital (2017) e Lacrima (2019). Publicado em 20-10-2020.
A sesta de José de Almada Negreiros (1939)
Quatro haikus
Na folha de mansinhoa gota de orvalhoquem a escuta?
*
No cacto o fogoda flor - fulgorou grito?
*
Orgulho de espinhosno cactopele intocada
*
Halo de fogoafoga-se no poente -saudade do sol
Carcavelos, 9 de Março de 2017
Bernardette Capelo
Autora de Ce que mon coeur sait de la semence / O que meu coração sabe da semente (poesia), 2014; Escrito a roxo(conto para a infância), 2017; e também de ensaios: Arte e Natureza na obra de Albano Martins, 2015, entre outros. Publicado em 7-10-2020.
Aguarela japonesa
Jogo de sombras
Era um senhor sombrio de quem ninguém sabia o nome, a origem, o que fazia, que ao passar suscitava a dúvida se ia, vinha, de onde para onde, a fazer o quê, se era ele ou a sombra dele, vestida com a roupa dele, a andar com o andar dele, o chapéu dele, ou se essa sombra seria a sombra de uma outra sombra, de uma outra sombra, de uma outra sombra dele.
Augusto Baptista (n.1946)
Autor de contos, "enigmas", fotografia e desenho. Últimos livros publicados: explicação dos gatos com figuras de tangram (2016), ENIgMATÓgRAFO (2016, 2.ª ed.), Gente do Porto (2017), O Lobo Mau no Hospital (2017) e Lacrima (2019). Publicado em 21-9-2020.
Sombras distantes de Victor Zag
Colunatas IV, acrílico s/ tela, 2013 (?), Sofia Pinto Correia
«Colunatas IV»
do fundo dos tempos
pairam oraculares
e altivas
figuras de tragédia
em torno da cidade
que as ignora
esquecida
das vozes seculares
as guarda.
Lisboa, 23-05-2015
Bernardette Capelo
Professora, crítica literária, poeta. Autora de Ce que mon coeur sait de la semence / O que meu coração sabe da semente (poesia), 2014; Escrito a roxo (conto para a infância), 2017; e também de ensaios: Arte e Natureza na obra de Albano Martins, 2015, entre outros. Publicado em 9-9-2020.
Verão de 1970
Recordo o teu rosto morenoNesse verão de todas as loucurasA minha camisa dos Porfírios escandalizavaOs transeuntesE o meu longo cabelo abria o livroDas transgressões ainda por vir.Ouvíamos Fleetwood Mac e Jethro TullCom a inocência das descobertas.E os Doors abriam-nos as portas da percepçãoNas caves mal iluminadasE perfumadas com o nosso suor de adolescentes.Perdi-te o rasto nesse verão longínquoAssim como perdi a crença nas coisas mais transcendentesE na moral ditada nas igrejas fosforescentes de santidadeMais do que duvidosa.Ao longe ouviam-se já os estampidos das automáticasE as explosões surdas dos dilagramasPor isso dançávamos ao som dos CreedenceE do Serge Gainsbourg como se fôssemosJá uns condenados à morteE sonâmbulos caminhássemos para o cadafalsoNos dias que deveriam ser os mais felizes da nossa vidaSem esperança e sem horizonteEm que a França ou a Suécia nos chamavamNas noites de insónia e de valium.Sim perdi-te nesse verão de beijos e masturbaçõesEm que Setembro significava o fim dos nossos sonhosDe rebeldia imberbe e o regressoÀs marchas militares e aos cânticos patrióticosDos liceus onde ouvíamos clandestinos José AfonsoE o Sérgio e o Zé Mário como os profetasDo apocalipse onde não se distinguiamAs lutas dos operários das flores de WoodstockOu a antiga relva de Verdun na voz de Carl SandburgOu de Bob Dylan.E assim sorríamos aos dias contando o tempoAntes da fuga ou da ida para as terras mais longínquasDa nossa desdita.Nesse Verão desejei-te e contigo mergulhei no AtlânticoTemeroso das águas mas desejosoDos teus beijos salgados. Era um virar da páginaEra a descoberta das transgressões a leituraDos sinais do tempo pois o tempo estava a mudarE com ele as nossas almas ainda recém-despertadasNessa caminhada que se abria como por magiaSobre o abismo de todos Os medos.
22 de Agosto de 2020
José Soares Martins (n. 1953)
Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 24-8-2020.
O beijo de Gustav Klimt (1907-1908)
Fiama, trinta ou mais anos corridos
o expurgado O Aquário
e depois tudo lera ou quase
muitas vezes sem achar
a saída do labirinto...
atravessando a sala de leitura
pisando em silêncio as nuvens térreas
tão irmã da Lua
naquelas tardes (ela vindo)
mais tranquilas que intranquilas
de antiga luz coada
na grande Biblioteca.
Fiama Hasse Pais Brandão
9-7-2020
João Pedro Mésseder (n. 1957)
Autor de Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética, 2006, A Doença das Cores seguido de Ilhas de Deus, 2016, E Nele Todo o Sangue se Concentra, 2018, e A Quem Pertence a Linha do Horizonte, 2020, entre outros. Publicado em 04-8-2020.
Cotão
sonhador do Canto IX,
que vais de imagem em imagem
sobre uma corda de sono,
a cada passo que dás,
deixas coisas para trás:
um fio, um cabelo, um pêlo,
um pedacinho de pele...
minúsculos pontos em chama...
Amanhã hás-de encontrá-los
debaixo da tua cama. Quarto em Arles (3.ª versão) de Vincent van Gogh (1889)
Violeta Figueiredo (n. 1947)
Autora de poesia e escritora, várias vezes distinguida, de literatura para a infância e a juventude. Alguns títulos nesta área: Mistérios em Tempo de Aulas, 1991; Fala Bicho, 1992; O Gato do Pêlo em Pé, 1997; Portas, 2008; Portões, 2008. A sua poesia pode ser lida em https://poemas-ineditos-vf.tumblr.com/ e noutros blogues. Publicado em 20-7-2020.
Onze enigmas víricos
Com tanto álcool as mãos não poderão embriagar?
•
Um mundo de máscaras: comédia ou tragédia?
•
Quem pôs mais gente a tremer: Napoleão ou o vírus?
•
Há palco para tanta máscara?
•
Quanto tempo se aguenta com finado?
•
Há máscaras S em caras XXL?
•
Muitos andam de máscara, óculos escuros, luvas, chapéu: para não serem reconhecidos pelos vírus?
•
Há quem mude de cara, quem nunca mude de máscara?
•
Corona: pandemia ou pandemónio?
•
Os bebés vão ser obrigados a nascer de máscara?
•
Há
um tempo A.C., outro D.C.: Antes de Covid, Depois de Covid?
Augusto Baptista (n.1946)
Autor de contos, "enigmas", fotografia e desenho. Últimos livros publicados: explicação dos gatos com figuras de tangram (2016), ENIgMATÓgRAFO (2016, 2.ª ed.), Gente do Porto (2017), O Lobo Mau no Hospital (2017) e Lacrima (2019), Publica no blogue https://azulcanario.blogspot.com/
Publicado em 13/07/2020
Game Changer de Banksy (2020)
Não tem já o corpo solidão
Não tem já o corpo solidão. A clausura recordemos, a casa consideremos, ouro, papel e vinho. Os canteiros dos vizinhos, junto às grades as hortênsias, claustros de reproduzir gatos. A vigília contra a noite, o uso e a hesitação, indo em sufoco despassarado o tempo. Alvorada ou diana, letargo ou desjejum. De improviso ou de rompante nos esgueiramos para as árvores, com voragem de floresta. Tanto viso, tanta brisa, damos costas a quem passa. Terra murada sem alento, em que excessos a peste pomos, de manso adeus a outra guarida, outro quarto de escrever, latifúndio entre paredes. Sou também as minhas posses, mais cadernos que ditames. Há quem fique, bem atento, há quem vá para narrar. A toada da frase seu intento é. Foi de cal, foi de calçada, a clausura recordamos, a nós consideramos, mais os hábitos que os monges. Foi prisão, foi privilégio, quando muito, outro tanto. Pois sem obrigação vos busco, vos dou conta do que penso. E logo vos desimpeço, a palavra é adeus.
3 de julho de 2020
Ana Cláudia Santos (n. 1984)
Tem-se dedicado à escrita e à tradução de autores como Vico e Leopardi. Doutorada em Teoria da Literatura, tem exercido actividade profissional como editora numa instituição universitária. Publicado em 6-7-2020
A poetisa de Marc Chagall (1887 - 1985)
Recordo-te sentada nas escadas...
Recordo-te sentada nas escadas
Da
velha casa do Infante
Junto
das avencas e dos espargos
Coses
as meias do avô
Com
um carinho de mãe
Com
a dignidade de um anjo
Silenciosa
vais operando o milagre
Como
quem reza o terço
De
Maio ao fim da tarde
Os
teus cabelos brancos falam
Do
tempo
Em
que havia cometas e eclipses
E
barricadas nas ruas
A
casa permanece silenciosa
E os
espelhos estão cheios
De
fantasmas
Quem
poderá saber
Da
vertigem do tempo?
Do
vórtice que como um buraco negro
Engole
os dias passados e futuros
Estás
viva e no entanto morta
Como
num aleph vejo-te longínqua
Nessa
brevidade em que coses as meias
Assim
tranquila ao fim da tarde
Como
se não houvesse mais nada
Para
além de ti
Como
se a cidade estivesse deserta
Com
a febre espanhola
E o
avô descesse já a rua das Taipas
Garboso
a caminho de casa
Com
o Século debaixo do braço
E a
cigarreira de prata junto ao coração
Cansado
de paludismos e aventuras de África
Como
se caminhasse ao teu encontro
Minha
avó
Como
se se aventurasse assim
Com
o cair das aves e dos sinos
A caminho
do silêncio
Do
universo
Assim
de olhos límpidos e claros
A caminho do grande
nevoeiro
20-6- 2020, dia dos meus anos
José Soares Martins (n. 1953)
Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 26-5-2020.
Vétheuil no nevoeiro de Claude Monet (1879)
Quatro haikus
Uma rosa rubra
emerge da névoa densa
floresce o silêncio
▪
Ramo no regato
choro de água corrente
voz da natureza
▪
Na orla do caminho
o pelotão de formigas
migração ao sol
▪
À flor do passeio
um lençol de folhas ocres
labareda ruiva
Aguarela de Ha So
José Efe (n. 1960)
Exerceu a docência. É assistente técnico. Como poeta, e destacando livros em que cultiva formas breves, editou No Teu Rosto Quase Ileso (1999), Fenda Acesa (2001), Seiva Rugosa (2006), Tempo Suspenso 37 Haikus (2017), entre outros títulos. Publicado em 18 -5-2020
Arquipélago de instantes...
Arquipélago de instantes:de nuvens de bosquede magnólia ou facacada um se afoganum mar altosecreto. Ninguém sabea lei que os liga.
Lisboa, 6-7-2015
Bernardette Capelo
Professora, crítica literária, poeta. Autora de Ce que mon coeur sait de la semence / O que meu coração sabe da semente (poesia), 2014; Escrito a roxo (conto para a infância), 2017; e também de ensaios: Arte e Natureza na obra de Albano Martins, 2015, entre outros. Publicado em 11-6-2020.
A janela aberta (1921) de Juan Gris
O mundo parou
não tarda nada vou ser projetado no espaço
o vento é uma asa congelada as nuvens carros avariados
o mar não mexe os barcos pasmaram
habitas decerto outro planeta
ou o cárcere longínquo de uma torre vigiada
caíste num pego sem fundo
perdeste a direção o sentido os sentidos se não a própria vida
um raio caiu entre nós olhamo-nos como pedras
a lava de um vulcão envolveu-nos para sempre
um silêncio inaudito brada na via láctea
por favor pestaneja para que o ar se mova
por favor inventa um sorriso para tudo descongelar
por favor põe os teus cabelos a fabricar mais volutas
para que essas espirais sejam o ovo de um ciclone
o olho de um furacão o eclodir de uma grande catástrofe
porque é preciso recomeçar tudo de novo
mais que soldar o eixo do planeta
impõe-se colar a recordação à realidade
e porem-nos a girar lado a lado
na mesma órbita
Anthero Monteiro
In Sulcos da Memória e do Esquecimento,
Corpos Editora, 2013 (com prefácio de Maria Helena Padrão)
Poeta, autor de livros para a infância, investigador em literatura e cultura portuguesas e em história local, e divulgador de poesia. Últimos títulos de poesia editados: Sete Vezes Sete Nuvens, 2010, e Sulcos da Memória e do Esquecimento, 2013. Publicado em 3-6-2020.
Edward Hopper, Cape Cod Morning, 1950
Voos (a pedra e o pássaro)
Nunca caí em pleno voo
talvez porque nunca tenha conseguido voar
Mas conheci pedras que afeiçoadas à mão
e com o impulso certo
subiam mais alto do que muitos pássaros
Talvez se cansassem mais depressa: não tem jeito
nenhum para uma pedra ficar tanto tempo
afastada do chão: uma pedra é uma pedra:
sempre pedra - não é bicho
para se aninhar nos ramos da amoreira a parir um ninho
Tirando isso sempre preferi pedras a pássaros
além do mais se um dia atirarmos um pássaro a uma pedra
ela não nos vem cair aos pés feita um frangalho
de bico e penas sangrando
de
um minúsculo coração.
Rita Taborda Duarte (n. 1973)
Poeta, crítica literária e autora de obra vasta e premiada, na área da escrita para a infância e a juventude, desde A Verdadeira História de Alice (2004) até Um Hotel de Imensas Estrelas (2019). Últimos títulos de poesia editados: Roturas e Ligamentos (2015) e As Orelhas de Karenin (2019). Publicado em 27-5-2020.
Pessoa atirando uma pedra a um pássaro (1926) de Joan Miró
Timor (1975)
O primeiro raio de sol
invade o meu corpo
sozinho vagueio nas planícies de Same
e sonho com a conquista
do Tata-Mai-Lau
acordo em Maubisse
rodeado de quatro paredes
prisioneiro da realidade
quero deixar os meus olhos
na caixa postal
esperando as tuas doces palavras
e o Porto aqui tão longe
deixo-me envolver pelo vazio
até ao supremo acto do pôr-do-sol
os dias passam
e só as sombras anunciam
a costa da liberdade
corres ao longe
e desapareces nas águas
apetece-me ser barco
argonauta da música
navegando ao encontro
dos teus braços
14-05-2020
verso 3- Same - sede de concelho do reinado de Manufahi
verso 5 - Tata-Mai-Lau - pico mais alto da cordilheira Ramelau
verso 6- Maubisse - posto administrativo do concelho de Same
José Pinto Leite (n. 1951)
Foi actor e dirigente do Teatro Universitário do Porto e exerceu a docência. Em 1975, integrado no exército português, chegou a estar preso em Timor. Como poeta, colaborou em publicações marginais como Off e Avatar, e em revistas como Quebra-Noz e Pé-de-Cabra. Em co-autoria, editou os livros Ménage à Trois (2011) e Bicho-da-seda (2020). Publicado em 20-5-2020.
Maubisse. Timor
Tutti Frutti
Muitas vezes te pedi -
era na casa da Rua do Infante -
que pusesses no pick-up o EP do Little Richard,
um dos teus tesouros mais bem guardados -
e que nós, teus amigos ainda imberbes, invejávamos
nessas longas tardes estivais de todos os sonhos,
de todas as viagens impossíveis
que a idade tornava possíveis.
E nunca me negaste - Deus te guarde - tal pedido,
esse bilhete para um breve transe suado e ruidoso,
que auspiciava para nós um mundo tutti frutti -
a wop bop a loo bop a lop bam boom.
Hoje Little Richard baixou os pés e as mãos do piano
e abandonou o palco,
embora a voz e o insano grito permaneçam
como um eco distante e não silenciável,
e embora os motivos blue e crazy, leste-oeste, Sue e Daisy, dois amores
se conservem em formol mas sempre audíveis.
Apetece mentir: mais jovens
do que nunca.
O mundo, esse, é que perdeu o sabor tutti frutti,
giradas cinco décadas em 78 rotações
está amargo o mundo e ácido, insípido às vezes,
como nunca até agora o conhecemos.
9-5-2020
João Pedro Mésseder (n. 1957)
Autor de Fissura, 2000, Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética, 2006, A Doença das Cores seguido de Ilhas de Deus, 2016, E Nele Todo o Sangue se Concentra, 2018, entre outros. Publicado em 14-5-2020.
Noite de insónia...
Noite de insónia. Como Bartolomeu Dias
Dobrei o cabo das Tormentas
Mas num oceano sem esperança.
Os dias tornam-se difíceis
E as raparigas desapareceram
Das ruas.
Agora a tristeza funda dos Outonos
Floresce nesta Primavera em flor
Como se as vespas entrassem
Nas cozinhas atraídas pelas geleias
Da minha mãe.
Morreu o Little Richard
Tudo que é sólido se desvanece
No ar como diria o velho Marx.
Vamos caminhando
Para o olvido como rios
Para o eterno mar.
Com a morte dos outros
Morremos também.
Tenho saudades das minhas antigas
Insónias
Do valium que roubava do cofre
Do meu avô
Das horas implacáveis
Do relógio da Bolsa.
Tudo passa até
A Maria dos Remédios
Com os seus cabelos loiros de loira ingrata
E a mini-saia à Sylvie Vartan
Caminhando como se fizesse amor
Diante dos meus olhos extasiados.
Noite de insónia
E uma ressaca do tamanho do mundo
E uma dor de cabeça do tamanho
Da Via Láctea.
Antimieri diria o Voznesenski
No seu jeito incomum
De dizer as coisas
Que todos pensávamos em segredo
Com medo do castigo de deus.
Antimieri
Para mal dos nossos pecados.
10-5-2020
José Soares Martins (n. 1953)
Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 14-5-2020.
Noite de Primavera...
Noite de Primavera
o perfume da flor de laranjeira
põe um véu de noiva na Lua
Manuel Silva-Terra (n. 1955)
Últimos títulos publicados: Canto Chão, 2016; Ser Casa, 2017; Medula, 2019. Também tradutor e editor. Publicado em 9-5-2020.
Aquarela de Koson (1910)
Porcelana
Já bebi canja por chávenas,
há chávenas que aturam tudo:
gelo, quentura, pires sujos,
vitrinas, pevides, gripes,
lágrimas, baba em canudo,
tudo,
à espera do dia-não
em que nos caiam ao chão.
Violeta Figueiredo (n. 1947)
Autora de poesia e escritora, várias vezes distinguida, de literatura para a infância e a juventude. Alguns títulos nesta área: Mistérios em Tempo de Aulas, 1991; Fala Bicho, 1992; O Gato do Pêlo em Pé, 1997; Portas, 2008; Portões, 2008. A sua poesia pode ser lida em https://violetafigueiredo.blogspot.com/ e noutros blogues.
Publicado em 3-5-2020.
A chávena de chá (1898) de Columbano Bordalo Pinheiro
1.º DE MAIO, DIA DO TRABALHADOR
A minha liberdade
vós os que procurais em vão
a justiça
vós os que interrogais os céus inutilmente
vós olhos doridos de desilusão
tomai a minha liberdade
vós que ainda não tivestes a vossa hora
vós que ainda não divisastes a terra prometida
vós que sois espoliados até da vossa esperança
tomai a minha liberdade
tomai-a nas mãos com amor religioso
é tudo o que possuo - e é tão pouca
é diminuta como uma semente
mas é como semente que eu a quero
é pela semente que aquele campo é uma seara
é pela semente que a foice desce ao trabalho
é pela semente que nesta mesa há pão
abdico desta semente
e na hora em que poderia usá-la
podeis lançá-la ao campo de batalha
para que dê fruto e vos sacie
bom é que morra no aceso do combate
como morrem todas as sementes
para ressurgir em libertação
1974
Anthero Monteiro (n. 1946)
Poeta, autor de livros para a infância, investigador em literatura e cultura portuguesas e em história local, pedagogo e divulgador de poesia. Últimos títulos de poesia editados: Sete Vezes Sete Nuvens, 2010, e Sulcos da Memória e do Esquecimento, 2013.
Publicado em 1-5-2020.
Cartoon de João Abel Manta
Que límpidas as águas de Veneza...
Que límpidas as águas de Veneza
Que silêncio nas ruas de Londres
Que ar puro nos boulevards de Paris
Parece que finalmente o homem entendeu
Parece que finalmente os pássaros e as árvores
Conquistaram a terra
É primavera e o cheiro dos morangos inebria
Os viandantes
Mas onde estão eles os viandantes
Onde estão os derradeiros poetas
Do impossível?
O fantasma de Blake caminha nas avenidas desertas
E o fogo dos tigres caminha com ele
E com Borges mais o seu Aleph
Até as guerras subitamente silenciaram
Os seus canhões de séculos
Terão chegado os tempos da segunda vinda?
Estará Jesus de novo entre nós
Com o seu olhar límpido e transfigurado
De amor pelos homens?
Estaremos nós nos tempos finais?
Onde estão as multidões?
Onde estão os profetas?
Para onde foram os sacerdotes de todos os templos?
E os chefes incontestados e os generais e os almirantes?
Para onde foram as esquadras e os exércitos?
Que oculto desígnio operou o milagre?
No cosmos as estrelas continuam brilhantes
E a lua voltou a ser de novo uma inspiração para os amantes
Que bom termos acedido finalmente ao toque de Midas
Ao velho sonho dos alquimistas
Nicolas Flamel pode repousar descansado
E Nostradamus e o Bandarra
Tudo o que tocamos
Se transforma não em oiro mas em pedra!
Bem-vindos ao reino da Medusa!
29-3-2020
José Soares Martins (n. 1953)
Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia.
Publicado em 29-4-2020
San Giorgio Maggiore at Dusk or Sunset in Venice (1908). Claude Monet
25 de Abril de 1974
Pela manhã ruíra o tempo conhecido
tempo de outrem
vagaroso como um verme.
Já as vozes desmancham o silêncio
o mais simples já pousa as mãos rugosas
numa folha em branco e sem delonga
escreve os dias sublevados.
E com a impaciência de dois corpos
no leito da noite interminável
principia então
o tempo sem medida.
João Pedro Mésseder (n. 1957)
Gazeta Literária, n.º especial (Começar de Novo), 2004, p. 6. Título inicial: "Memória".
Publicado em 24-4-2020.
"Grândola, vila morena", a canção símbolo do 25 de Abril,
do grande poeta-compositor-cantor, que foi José Afonso.
A Poesia está na Rua (1974). Vieira da Silva
DIA MUNDIAL DO LIVRO 2020
Se os bibliotecários fossem honestos
"um livro desencaminhou-me por vezes do meu trabalho..."
Benjamin Franklin
Se os bibliotecários fossem honestos,
não sorririam, nem poriam um ar
de boas-vindas. Diriam:
Tens de ser cuidadoso. Aqui
há monstros. Diriam:
Estas salas albergam pagãos
e heréticos, assassinos e
maníacos, os iludidos, desesperados
e devassos. Diriam:
Estes livros contêm conhecimento
sobre morte, desejo e decadência,
traição, sangue e mais sangue;
cada um é uma caixa de Pandora, por isso
porque haverias de querer abrir um deles?
Colocariam sinais de
perigo avisando que o contacto
pode degenerar em mudança de humor,
modificações drásticas de visão
e efeitos perturbadores da mente.
Se os bibliotecários fossem honestos,
admitiriam que as pilhas de livros
podem ser mais sedutoras e
chocantes do que pornografia. Afinal,
quando já viste alguns
seios, vaginas e pénis,
mais é apenas mais,
uma banalidade reconfortante,
mas as prateleiras de uma biblioteca
contêm novidades sensacionais,
uma mistura escandalosa e permissiva
de Malcom X, Marx, Melville,
Merwin, Millay, Milton, Morrison,
e qualquer um as pode requisitar
levando-as para casa ou para algum canto
onde pode ser desencaminhado
e impregnado por ideias.
Se os bibliotecários fossem honestos,
Diriam: Ninguém
passa tempo aqui sem sofrer
uma mudança. Talvez devesses
ir para casa. Enquanto ainda podes.
Joseph Mills
Poeta e professor universitário norte-americano. Último título publicado: Bleachers: Fifty-Four Linked Fictions, 2019.
Tradução: Miguel Ramalhete Gomes.
https://www.libraryasincubatorproject.org/wp-content/uploads/2012/09/Mills_If_Librarians_Were_Honest.pdf
(16-12-2015). Publicado em 23-4-2020.
Duas meninas a ler (1934) Picasso
Errata 2
Onde se lê bala, leia-se halo.
Onde se lê cela, leia-se tela.
Onde se lê cacto, leia-se gato.
Onde se lê triste, leia-se chiste.
Onde se lê gelo, leia-se pêlo.
Onde se lê dobra, leia-se sobra.
Onde se lê furto, leia-se fruto.
Onde se lê grito, leia-se trilo.
Onde se lê meu, leia-se teu.
Onde se lê bruma, leia-se rumo.
João Pedro Mésseder (n. 1957)
Autor de Fissura, 2000, Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética, 2006, A Doença das Cores
seguido de Ilhas de Deus, 2016, E Nele Todo o Sangue se Concentra, 2018, entre outros.
Publicado em 20-4-2020.
O gato e o pássaro (1928) de Paul Klee
Um casal de melros...
Um casal de melros
está a fazer ninho no quintal
ele tem só a porta do céu.
Manuel Silva-Terra (n. 1955)
Últimos títulos publicados: Canto Chão, 2016; Ser Casa, 2017; Medula, 2019. Também tradutor e editor. Publicado em 16-4-2020
O discurso sobre a paz
No final de um
discurso extremamente importante
o grande homem de Estado, estrebuchante
com uma bela frase furada
fica hesitante
e desampara a bocarra escancarada
resfolegante
mostra os dentes
e a cárie dentária de seu raciocínio pacificante
deixa exposto o nervo da guerra
a delicada questão do montante.
Guerra e Paz de Cândido Portinari (1952-1956)
Le discours sur la paix
Vers la fin d'un discours
extrêmement important
le grand homme d'Etat trébuchant
sur une belle phrase creuse
tombe dedans
et désemparé la bouche grande ouverte
haletant
montre les dents
et la carie dentaire de ses pacifiques raisonnements
met à vif le nerf de la guerre
la délicate question d'argent.
Jacques Prévert (1900-1977), Paroles (1946). Tradução de Adriano Scandolara
https://escamandro.wordpress.com/2012/05/15/6-poemas-de-jacques-prevert/ Publicado em 15-4-2020
Que dizer deste silêncio das ruas...
Que dizer deste silêncio das ruas
Deste estar vivo atrás das janelas
Deste isolamento irmão da peste negra
Das gafarias dos hospícios?
As paredes abrem-se em brechas de noite
E nos espelhos os mortos ressuscitam
Como sombras ao anoitecer
Torna-se difícil caminhar nas ruas
E no entanto é primavera
E no entanto as flores desabrocham
E no entanto os morangos são de novo possíveis
Os morangos e as primeiras abelhas
Parece que a natureza nos volta as costas e sorri
Para os anjos que invisíveis olham os nossos passos
Do alto das torres
Onde os morcegos e as corujas indiferentes aos dramas dos homens
Seguem os raios da lua essa peregrina dos céus
E os céus vivem sem nós
E o cosmos vive sem nós
E o tempo vive sem nós
E não há um poeta que se levante e que "dê o coração ao mundo"
Porque o mundo não precisa mais dele.
27 de março de 2020
José Soares Martins (n. 1953)
Sobre o lado esquerdo
Repouso na mesa de Júlio Pomar
De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração».
Carlos de Oliveira (1921-1981)
Sobre o Lado Esquerdo, Dom Quixote, 1968, p. 6.