Os gatos filosofam junto ao aquecedor...
Os gatos filosofam junto ao aquecedor,
De olhos fechados pensam o infinito
Tranquilamente
Como quem não espera mais nada
Do que o paté e os afagos do dono.
La fora o vento
A memória de antigos poemas
E de noites tempestuosas,
O meu pai recém-chegado da pesca
Com o seu velho casacão marítimo
Os olhos ainda cheios de mar
E de noite.
Dói-me o corpo.
Amanhã será mais um dia de pandemia.
Que fazer? Que fazer, Vladimir Ilich Ulianov?
Há muitos anos numa primavera antiga como o mundo
A Vida Mundial sobre a mesa:
Uma crítica cinematográfica ao Requiem por um Rei Virgem
Do Hans-Jürgen Syberberg,
Expressionismo, Murnau, Pabst, Wiene, O Gabinete do Doutor Caligari.
Como tudo passa. Relembro uma tarde em que li
Os Espectros do Ibsen ao som da "Rain Song" dos Zeppelin.
Tantas memórias, tantos fantasmas.
Penso nela na sua nova casa no seu espanto renovado
De quem está a descobrir o mundo.
As utopias sempre inalcançáveis como a nossa própria
Sombra.
Tal como ela eu também olhava com espanto há muitos anos
Nas tardes da eternidade para um mundo imenso
Quando todos eram vivos e a morte
Uma palavra nas bocas de Soares de Passos e de Ferré.
Olho em volta, preciso de uma aspirina urgente,
Tenho a conta a descoberto.
Tal como a minha cama desfeita pelos gatos
Onde um corpo antigo subitamente ainda repousa numa outra vida
Sempre nu, sempre jovem,
De falsa rapariga ingénua a falar de coisas falsamente ingénuas.
Como os textos de Vercors e os cigarros SG gigante,
Como aquela manhã de névoas em que partiu falsamente constrangida
Para nenhures. Um comboio com o cadáver do Brian Jones na mala de viagem.
Amanhã sempre amanhã. Tomorrow and tomorrow and tomorrow
Out out brief candle!
Onde estará o abade da Igreja de Nossa Senhora da Conceição?
Em que cemitério apodrece esse comedor de lampreias?
Passou o vento, os gatos olham-me agora
Com os seus olhos egípcios de divindades
Desterradas
E neles vejo os tempos e os espaços que nunca entendi.
A eternidade é de certeza uma chatice,
A cantilena dos anjos,
O bocejo de Deus
Cheio de gota quase surdo,
Indiferente à gritaria
Do universo, aos gemidos de Auschwitz.
Sim, passou o vento do oeste,
Shelley continua a arder na pira funerária
Em la Spezia.
O meu pai desapareceu mais o seu casacão de pesca
E as galochas da cor da noite. O meu pai e a minha mãe
Mais os seus salmos do rei David ao som das trindades.
Ela continuará falando
Na distância do telefone diante de um rio que já foi meu,
Enquanto a pandemia vai alastrando
E os gatos no seu romantismo negro e gótico
Espreguiçando-se lentamente e acordando
Do seu sono profundo e entrópico,
Enquanto lentamente se vão desmoronando
As pirâmides do Egipto.
Do seu sono profundo e entrópico,
Enquanto lentamente se vão desmoronando
As pirâmides do Egipto.
11-12-2020, 3 h da manhã
José Soares Martins (n. 1953)
Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020). Tem para publicação Ruínas e Bastiões (2021) e é autor de obras na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 24-3-2021.

Procura 2, de Miguel Cameira
Diante do mar recordo o teu rosto...
Diante do mar recordo o teu rosto
Os teus cabelos ruivos num dia de chuva.
Juramos que nos voltaríamos a encontrar
Depois da morte
Nesta mesma praia agora deserta
Batida pelos ventos do norte.
Onde estão todos?
Onde estão aqueles que conspiravam
Na sombra dos quartéis
Lendo Marx e Sartre às escondidas
Aspirando pelo dia da grande revolução?
Onde estás tu?
Li a tua última carta numa tarde da eternidade
Dizias-te em Boston com um novo namorado
Da idade do Ferlinghetti.
Recordo-te naquele dia de chuva
Em que debaixo de um aguaceiro
Cantámos venturosos
A Serenata à Chuva nas ruas então desertas
Como agora. Se ainda fores viva
Que dirás tu do Trump?
E da pandemia que te assola o país?
E das ruas desertas de Boston?
Ainda tenho comigo
A edição inglesa do Jogo das Contas de Vidro
Do Herman Hesse. Ainda tenho comigo
As tuas fotografias de túnica laranja
E flores no cabelo.
Ainda me lembro
Das rigorosas dietas vegetarianas
Com que me querias converter
Ao perfume de Woodstock
E aos bolinhos dos Hare Krishna em Avinhão.
Agora só o vento atravessa
Estas ruas por onde andámos um dia
A sonhar com revoluções
E barricadas de poemas.
Todos morreram já, Bendsy.
Todos, até aquela comunidade
Planetária que nós vislumbrávamos
Em McLuhan em Marcuse ou Alan Watts.
Que aconteceu?
Nem a voz dos deuses
Nos consegue despertar
Deste pesadelo.
28 de Junho de 2020
José Soares Martins
Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado a 07/12/2020

Monge à Beira-mar de Caspar David Friedrich (1810)
Verão de 1970
Recordo o teu rosto moreno
Nesse verão de todas as loucuras
A minha camisa dos Porfírios escandalizava
Os transeuntes
E o meu longo cabelo abria o livro
Das transgressões ainda por vir.
Ouvíamos Fleetwood Mac e Jethro Tull
Com a inocência das descobertas.
E os Doors abriam-nos as portas da percepção
Nas caves mal iluminadas
E perfumadas com o nosso suor de adolescentes.
Perdi-te o rasto nesse verão longínquo
Assim como perdi a crença nas coisas mais transcendentes
E na moral ditada nas igrejas fosforescentes de santidade
Mais do que duvidosa.
Ao longe ouviam-se já os estampidos das automáticas
E as explosões surdas dos dilagramas
Por isso dançávamos ao som dos Creedence
E do Serge Gainsbourg como se fôssemos
Já uns condenados à morte
E sonâmbulos caminhássemos para o cadafalso
Nos dias que deveriam ser os mais felizes da nossa vida
Sem esperança e sem horizonte
Em que a França ou a Suécia nos chamavam
Nas noites de insónia e de valium.
Sim perdi-te nesse verão de beijos e masturbações
Em que Setembro significava o fim dos nossos sonhos
De rebeldia imberbe e o regresso
Às marchas militares e aos cânticos patrióticos
Dos liceus onde ouvíamos clandestinos José Afonso
E o Sérgio e o Zé Mário como os profetas
Do apocalipse onde não se distinguiam
As lutas dos operários das flores de Woodstock
Ou a antiga relva de Verdun na voz de Carl Sandburg
Ou de Bob Dylan.
E assim sorríamos aos dias contando o tempo
Antes da fuga ou da ida para as terras mais longínquas
Da nossa desdita.
Nesse Verão desejei-te e contigo mergulhei no Atlântico
Temeroso das águas mas desejoso
Dos teus beijos salgados. Era um virar da página
Era a descoberta das transgressões a leitura
Dos sinais do tempo pois o tempo estava a mudar
E com ele as nossas almas ainda recém-despertadas
Nessa caminhada que se abria como por magia
Sobre o abismo de todos
Os medos.
22 de Agosto de 2020
José Soares Martins (n. 1953)
Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 24-8-2020.

O beijo de Gustav Klimt (1907-1908)
Recordo-te sentada nas escadas...
Recordo-te sentada nas escadas
Da
velha casa do Infante
Junto
das avencas e dos espargos
Coses
as meias do avô
Com
um carinho de mãe
Com
a dignidade de um anjo
Silenciosa
vais operando o milagre
Como
quem reza o terço
De
Maio ao fim da tarde
Os
teus cabelos brancos falam
Do
tempo
Em
que havia cometas e eclipses
E
barricadas nas ruas
A
casa permanece silenciosa
E os
espelhos estão cheios
De
fantasmas
Quem
poderá saber
Da
vertigem do tempo?
Do
vórtice que como um buraco negro
Engole
os dias passados e futuros
Estás
viva e no entanto morta
Como
num aleph vejo-te longínqua
Nessa
brevidade em que coses as meias
Assim
tranquila ao fim da tarde
Como
se não houvesse mais nada
Para
além de ti
Como
se a cidade estivesse deserta
Com
a febre espanhola
E o
avô descesse já a rua das Taipas
Garboso
a caminho de casa
Com
o Século debaixo do braço
E a
cigarreira de prata junto ao coração
Cansado
de paludismos e aventuras de África
Como
se caminhasse ao teu encontro
Minha
avó
Como
se se aventurasse assim
Com
o cair das aves e dos sinos
A caminho
do silêncio
Do
universo
Assim
de olhos límpidos e claros
A caminho do grande
nevoeiro
20-6- 2020, dia dos meus anos
José Soares Martins (n. 1953)
Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 26-5-2020.

Vétheuil no nevoeiro de Claude Monet (1879)
Noite de insónia...
Noite de insónia. Como Bartolomeu Dias
Dobrei o cabo das Tormentas
Mas num oceano sem esperança.
Os dias tornam-se difíceis
E as raparigas desapareceram
Das ruas.
Agora a tristeza funda dos Outonos
Floresce nesta Primavera em flor
Como se as vespas entrassem
Nas cozinhas atraídas pelas geleias
Da minha mãe.
Morreu o Little Richard
Tudo que é sólido se desvanece
No ar como diria o velho Marx.
Vamos caminhando
Para o olvido como rios
Para o eterno mar.
Com a morte dos outros
Morremos também.
Tenho saudades das minhas antigas
Insónias
Do valium que roubava do cofre
Do meu avô
Das horas implacáveis
Do relógio da Bolsa.
Tudo passa até
A Maria dos Remédios
Com os seus cabelos loiros de loira ingrata
E a mini-saia à Sylvie Vartan
Caminhando como se fizesse amor
Diante dos meus olhos extasiados.
Noite de insónia
E uma ressaca do tamanho do mundo
E uma dor de cabeça do tamanho
Da Via Láctea.
Antimieri diria o Voznesenski
No seu jeito incomum
De dizer as coisas
Que todos pensávamos em segredo
Com medo do castigo de deus.
Antimieri
Para mal
dos nossos pecados.
10-5-2020
José Soares Martins (n. 1953)
Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 14-5-2020.
Que límpidas as águas de Veneza...
Que límpidas as águas de Veneza
Que silêncio nas ruas de Londres
Que ar puro nos boulevards de Paris
Parece que finalmente o homem entendeu
Parece que finalmente os pássaros e as árvores
Conquistaram a terra
É primavera e o cheiro dos morangos inebria
Os viandantes
Mas onde estão eles os viandantes
Onde estão os derradeiros poetas
Do impossível?
O fantasma de Blake caminha nas avenidas desertas
E o fogo dos tigres caminha com ele
E com Borges mais o seu Aleph
Até as guerras subitamente silenciaram
Os seus canhões de séculos
Terão chegado os tempos da segunda vinda?
Estará Jesus de novo entre nós
Com o seu olhar límpido e transfigurado
De amor pelos homens?
Estaremos nós nos tempos finais?
Onde estão as multidões?
Onde estão os profetas?
Para onde foram os sacerdotes de todos os templos?
E os chefes incontestados e os generais e os almirantes?
Para onde foram as esquadras e os exércitos?
Que oculto desígnio operou o milagre?
No cosmos as estrelas continuam brilhantes
E a lua voltou a ser de novo uma inspiração para os amantes
Que bom termos acedido finalmente ao toque de Midas
Ao velho sonho dos alquimistas
Nicolas Flamel pode repousar descansado
E Nostradamus e o Bandarra
Tudo o que tocamos
Se transforma não em oiro mas em pedra!
Bem-vindos ao reino da Medusa!
29-3-2020
José Soares Martins (n. 1953)
Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia.
Publicado em 29-4-2020

San Giorgio Maggiore at Dusk or Sunset in Venice (1908). Claude Monet
Que dizer deste silêncio das ruas...

Que dizer deste silêncio das ruas
Deste estar vivo atrás das janelas
Deste isolamento irmão da peste negra
Das gafarias dos hospícios?
As paredes abrem-se em brechas de noite
E nos espelhos os mortos ressuscitam
Como sombras ao anoitecer
Torna-se difícil caminhar nas ruas
E no entanto é primavera
E no entanto as flores desabrocham
E no entanto os morangos são de novo possíveis
Os morangos e as primeiras abelhas
Parece que a natureza nos volta as costas e sorri
Para os anjos que invisíveis olham os nossos passos
Do alto das torres
Onde os morcegos e as corujas indiferentes aos dramas dos homens
Seguem os raios da lua essa peregrina dos céus
E os céus vivem sem nós
E o cosmos vive sem nós
E o tempo vive sem nós
E não há um poeta que se levante e que "dê o coração ao mundo"
Porque o mundo não precisa mais dele.
27 de março de 2020
José Soares Martins (n. 1953)