A cântaros
Ameaça
de chuva
Sem
sinal de chuva
Chuva
miúda
Chuva
ligeira
Chuva
fina
Chuva
grossa
Aguaceiros
dispersos
Chuva
forte
Chuva
fustigante
Chuva
intermitente
Chuva
abundante
Raros
chuviscos
Chuva
constante
Chuva
contínua
Chuva
torrencial
Chuvadas
curtas
Chuvadas
breves
Chuva insistente
Chuva
persistente
Chuva
intensa
Chuva
violenta
Chuvada
súbita
Um
pouco mais de chuva
Chuva
molha-todos
Não
choveu, embora por várias vezes parecesse que ia chover.
Ana Cláudia Santos (n. 1984)
Tem-se dedicado à escrita e à tradução de autores como Vico e Leopardi. Doutorada em Teoria da Literatura, exerce actividade profissional como editora numa instituição universitária. Publicado em 14-2-2021.

Rua de Paris; dia de chuva de Gustave Caillebotte (1877)
Bagatela
Arranjou um biscate como cliente mistério numa empresa internacional de pagamentos. Tinha de testar três tipos de cartões bancários em trezentas lojas, fazendo em cada uma três compras, e medindo num aparelho que lhe fora fornecido o tempo que cada transacção levava a ser feita. Em cada loja tinha 20 euros para gastar; se gastasse cinco, os 15 restantes ficavam para ele. As coisas também ficavam para ele, e era assim que era pago. Fazendo sempre por comprar as coisas mais baratas, acumulou sacos de bagatelas. No dia em que terminou a tarefa, dispôs no chão da sala tudo o que adquirira. Havia sabonetes, esponjas de banho, velas, colheres de pau, copos, canecas, porta-chaves, molduras, cigarros, embalagens de chá, de massa e de cereais, brinquedos para gato, lenços de pescoço, camisolas, meias, cintos, cartas de jogar, fita métrica de costura, alfinetes, furador, agrafador, lápis de cor, canetas Staedtler de ponta fina made in Germany, cadernos, livros. Uma caixa de cotonetes caiu-lhe das mãos e abriu-se, dispersando no chão os pauzinhos algodoados como peças de Mikado. Fotografou a sala para se lembrar de todas as coisas que comprara e daquele trabalho tão bem pago e misterioso. Na fotografia, o gato fita-o, perplexo, como se não soubesse por onde começar. Ainda tem algumas das coisas, mas já não tem o gato.
01/02/2021
Ana Cláudia Santos (n. 1984)
Tem-se dedicado à escrita e à tradução de autores como Vico e Leopardi. Doutorada em Teoria da Literatura, tem exercido atividade profissional como editora numa instituição universitária. Publicado em 12-2-2021.

Charles Robinson, ilustração de Alice's Adventures in Wonderland, de Lewis Carroll (1907)
Não tem já o corpo solidão
Não tem já o corpo solidão. A clausura recordemos, a casa consideremos, ouro, papel e vinho. Os canteiros dos vizinhos, junto às grades as hortênsias, claustros de reproduzir gatos. A vigília contra a noite, o uso e a hesitação, indo em sufoco despassarado o tempo. Alvorada ou diana, letargo ou desjejum. De improviso ou de rompante nos esgueiramos para as árvores, com voragem de floresta. Tanto viso, tanta brisa, damos costas a quem passa. Terra murada sem alento, em que excessos a peste pomos, de manso adeus a outra guarida, outro quarto de escrever, latifúndio entre paredes. Sou também as minhas posses, mais cadernos que ditames. Há quem fique, bem atento, há quem vá para narrar. A toada da frase seu intento é. Foi de cal, foi de calçada, a clausura recordamos, a nós consideramos, mais os hábitos que os monges. Foi prisão, foi privilégio, quando muito, outro tanto. Pois sem obrigação vos busco, vos dou conta do que penso. E logo vos desimpeço, a palavra é adeus.
3 de julho de 2020
Ana Cláudia Santos (n. 1984)
Tem-se dedicado à escrita e à tradução de autores como Vico e Leopardi. Doutorada em Teoria da Literatura, tem exercido actividade profissional como editora numa instituição universitária. Publicado em 6-7-2020

A poetisa de Marc Chagall (1887 - 1985)