Bagatela
Arranjou um biscate como cliente mistério numa empresa internacional de pagamentos. Tinha de testar três tipos de cartões bancários em trezentas lojas, fazendo em cada uma três compras, e medindo num aparelho que lhe fora fornecido o tempo que cada transacção levava a ser feita. Em cada loja tinha 20 euros para gastar; se gastasse cinco, os 15 restantes ficavam para ele. As coisas também ficavam para ele, e era assim que era pago. Fazendo sempre por comprar as coisas mais baratas, acumulou sacos de bagatelas. No dia em que terminou a tarefa, dispôs no chão da sala tudo o que adquirira. Havia sabonetes, esponjas de banho, velas, colheres de pau, copos, canecas, porta-chaves, molduras, cigarros, embalagens de chá, de massa e de cereais, brinquedos para gato, lenços de pescoço, camisolas, meias, cintos, cartas de jogar, fita métrica de costura, alfinetes, furador, agrafador, lápis de cor, canetas Staedtler de ponta fina made in Germany, cadernos, livros. Uma caixa de cotonetes caiu-lhe das mãos e abriu-se, dispersando no chão os pauzinhos algodoados como peças de Mikado. Fotografou a sala para se lembrar de todas as coisas que comprara e daquele trabalho tão bem pago e misterioso. Na fotografia, o gato fita-o, perplexo, como se não soubesse por onde começar. Ainda tem algumas das coisas, mas já não tem o gato.
01/02/2021
Ana Cláudia Santos (n. 1984)
Tem-se dedicado à escrita e à tradução de autores como Vico e Leopardi. Doutorada em Teoria da Literatura, tem exercido atividade profissional como editora numa instituição universitária. Publicado em 12-2-2021.

Charles Robinson, ilustração de Alice's Adventures in Wonderland, de Lewis Carroll (1907)