Diante do mar recordo o teu rosto…

07-12-2020

Diante do mar recordo o teu rosto
Os teus cabelos ruivos num dia de chuva.
Juramos que nos voltaríamos a encontrar
Depois da morte
Nesta mesma praia agora deserta
Batida pelos ventos do norte.
Onde estão todos?
Onde estão aqueles que conspiravam
Na sombra dos quartéis
Lendo Marx e Sartre às escondidas
Aspirando pelo dia da grande revolução?
Onde estás tu?
Li a tua última carta numa tarde da eternidade
Dizias-te em Boston com um novo namorado
Da idade do Ferlinghetti.
Recordo-te naquele dia de chuva
Em que debaixo de um aguaceiro
Cantámos venturosos
A Serenata à Chuva nas ruas então desertas
Como agora. Se ainda fores viva
Que dirás tu do Trump?
E da pandemia que te assola o país?
E das ruas desertas de Boston?
Ainda tenho comigo
A edição inglesa do Jogo das Contas de Vidro
Do Herman Hesse. Ainda tenho comigo
As tuas fotografias de túnica laranja
E flores no cabelo.
Ainda me lembro
Das rigorosas dietas vegetarianas
Com que me querias converter
Ao perfume de Woodstock
E aos bolinhos dos Hare Krishna em Avinhão.
Agora só o vento atravessa
Estas ruas por onde andámos um dia
A sonhar com revoluções
E barricadas de poemas.
Todos morreram já, Bendsy.
Todos, até aquela comunidade
Planetária que nós vislumbrávamos
Em McLuhan em Marcuse ou Alan Watts.
Que aconteceu?
Nem a voz dos deuses
Nos consegue despertar
Deste pesadelo.

28 de Junho de 2020 

José Soares Martins

Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado a 07/12/2020


Monge à Beira-mar de Caspar David Friedrich (1810)

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