Que dizer deste silêncio das ruas…
Que dizer deste silêncio das ruas
Deste estar vivo atrás das janelas
Deste isolamento irmão da peste negra
Das gafarias dos hospícios?
As paredes abrem-se em brechas de noite
E nos espelhos os mortos ressuscitam
Como sombras ao anoitecer
Torna-se difícil caminhar nas ruas
E no entanto é primavera
E no entanto as flores desabrocham
E no entanto os morangos são de novo possíveis
Os morangos e as primeiras abelhas
Parece que a natureza nos volta as costas e sorri
Para os anjos que invisíveis olham os nossos passos
Do alto das torres
Onde os morcegos e as corujas indiferentes aos dramas dos homens
Seguem os raios da lua essa peregrina dos céus
E os céus vivem sem nós
E o cosmos vive sem nós
E o tempo vive sem nós
E não há um poeta que se levante e que "dê o coração ao mundo"
Porque o mundo não precisa mais dele.
27 de março de 2020
José Soares Martins (n. 1953)
