Os gatos filosofam junto ao aquecedor…

24-03-2021

Os gatos filosofam junto ao aquecedor,
De olhos fechados pensam o infinito
Tranquilamente
Como quem não espera mais nada
Do que o paté e os afagos do dono.
La fora o vento
A memória de antigos poemas
E de noites tempestuosas,
O meu pai recém-chegado da pesca
Com o seu velho casacão marítimo
Os olhos ainda cheios de mar
E de noite.
Dói-me o corpo.
Amanhã será mais um dia de pandemia.
Que fazer? Que fazer, Vladimir Ilich Ulianov?
Há muitos anos numa primavera antiga como o mundo
A Vida Mundial sobre a mesa:
Uma crítica cinematográfica ao Requiem por um Rei Virgem
Do Hans-Jürgen Syberberg,
Expressionismo, Murnau, Pabst, Wiene, O Gabinete do Doutor Caligari.
Como tudo passa. Relembro uma tarde em que li
Os Espectros do Ibsen ao som da "Rain Song" dos Zeppelin.
Tantas memórias, tantos fantasmas.


Penso nela na sua nova casa no seu espanto renovado
De quem está a descobrir o mundo.
As utopias sempre inalcançáveis como a nossa própria
Sombra.
Tal como ela eu também olhava com espanto há muitos anos
Nas tardes da eternidade para um mundo imenso
Quando todos eram vivos e a morte
Uma palavra nas bocas de Soares de Passos e de Ferré.


Olho em volta, preciso de uma aspirina urgente,
Tenho a conta a descoberto.
Tal como a minha cama desfeita pelos gatos
Onde um corpo antigo subitamente ainda repousa numa outra vida
Sempre nu, sempre jovem,
De falsa rapariga ingénua a falar de coisas falsamente ingénuas.
Como os textos de Vercors e os cigarros SG gigante,
Como aquela manhã de névoas em que partiu falsamente constrangida
Para nenhures. Um comboio com o cadáver do Brian Jones na mala de viagem.
Amanhã sempre amanhã. Tomorrow and tomorrow and tomorrow
Out out brief candle!
Onde estará o abade da Igreja de Nossa Senhora da Conceição?
Em que cemitério apodrece esse comedor de lampreias?
Passou o vento, os gatos olham-me agora
Com os seus olhos egípcios de divindades
Desterradas
E neles vejo os tempos e os espaços que nunca entendi.
A eternidade é de certeza uma chatice,
A cantilena dos anjos,
O bocejo de Deus
Cheio de gota quase surdo,
Indiferente à gritaria
Do universo, aos gemidos de Auschwitz.
Sim, passou o vento do oeste,
Shelley continua a arder na pira funerária
Em la Spezia.
O meu pai desapareceu mais o seu casacão de pesca
E as galochas da cor da noite. O meu pai e a minha mãe
Mais os seus salmos do rei David ao som das trindades.
Ela continuará falando
Na distância do telefone diante de um rio que já foi meu,
Enquanto a pandemia vai alastrando
E os gatos no seu romantismo negro e gótico
Espreguiçando-se lentamente e acordando
Do seu sono profundo e entrópico,
Enquanto lentamente se vão desmoronando
As pirâmides do Egipto.

11-12-2020, 3 h da manhã

José Soares Martins (n. 1953)

Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020). Tem para publicação Ruínas e Bastiões (2021) e é autor de obras na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 24-3-2021.

Procura 2, de Miguel Cameira 

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