Recordo-te sentada nas escadas…

26-06-2020

Recordo-te sentada nas escadas
Da velha casa do Infante
Junto das avencas e dos espargos
Coses as meias do avô
Com um carinho de mãe
Com a dignidade de um anjo
Silenciosa vais operando o milagre
Como quem reza o terço
De Maio ao fim da tarde
Os teus cabelos brancos falam
Do tempo                                                                                
Em que havia cometas e eclipses
E barricadas nas ruas
A casa permanece silenciosa
E os espelhos estão cheios
De fantasmas
Quem poderá saber
Da vertigem do tempo?
Do vórtice que como um buraco negro
Engole os dias passados e futuros
Estás viva e no entanto morta
Como num aleph vejo-te longínqua
Nessa brevidade em que coses as meias
Assim tranquila ao fim da tarde
Como se não houvesse mais nada
Para além de ti
Como se a cidade estivesse deserta
Com a febre espanhola
E o avô descesse já a rua das Taipas
Garboso a caminho de casa
Com o Século debaixo do braço
E a cigarreira de prata junto ao coração
Cansado de paludismos e aventuras de África
Como se caminhasse ao teu encontro
Minha avó
Como se se aventurasse assim
Com o cair das aves e dos sinos
A caminho do silêncio
Do universo
Assim de olhos límpidos e claros
A caminho do grande nevoeiro

20-6- 2020, dia dos meus anos

José Soares Martins (n. 1953)

Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 26-5-2020.

     Vétheuil no nevoeiro de Claude Monet (1879 )


Copyright © 2020 Blog SOBRE O LADO ESQUERDO. Poesia & textos afins. Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Webnode
Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora