Tributo a Little Richard

14-05-2020

Tutti Frutti

Muitas vezes te pedi -

era na casa da Rua do Infante -

que pusesses no pick-up o EP do Little Richard,

um dos teus tesouros mais bem guardados -


e que nós, teus amigos ainda imberbes, invejávamos

nessas longas tardes estivais de todos os sonhos,

de todas as viagens impossíveis

que a idade tornava possíveis. 


E nunca me negaste - Deus te guarde - tal pedido,

esse bilhete para um breve transe suado e ruidoso,

que auspiciava para nós um mundo tutti frutti -

a wop bop a loo bop a lop bam boom.


Hoje Little Richard baixou os pés e as mãos do piano

e abandonou o palco,

embora a voz e o insano grito permaneçam

como um eco distante e não silenciável,


e embora os motivos blue e crazy, leste-oeste, Sue e Daisy, dois amores

se conservem em formol mas sempre audíveis.

Apetece mentir: mais jovens

do que nunca.


O mundo, esse, é que perdeu o sabor tutti frutti,

giradas cinco décadas em 78 rotações

está amargo o mundo e ácido, insípido às vezes,

como nunca até agora o conhecemos.   

9-5-2020

João Pedro Mésseder (n. 1957)

Autor de Fissura, 2000, Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética, 2006, A Doença das Cores seguido de Ilhas de Deus, 2016, E Nele Todo o Sangue se Concentra, 2018, entre outros. Publicado em 14-5-2020.



Noite de insónia... 


Noite de insónia. Como Bartolomeu Dias

Dobrei o cabo das Tormentas

Mas num oceano sem esperança.

Os dias tornam-se difíceis

E as raparigas desapareceram

Das ruas.

Agora a tristeza funda dos Outonos

Floresce nesta Primavera em flor

Como se as vespas entrassem

Nas cozinhas atraídas pelas geleias

Da minha mãe.

Morreu o Little Richard

Tudo que é sólido se desvanece

No ar como diria o velho Marx.

Vamos caminhando

Para o olvido como rios

Para o eterno mar.

Com a morte dos outros

Morremos também.

Tenho saudades das minhas antigas

Insónias

Do valium que roubava do cofre

Do meu avô

Das horas implacáveis

Do relógio da Bolsa.

Tudo passa até

A Maria dos Remédios

Com os seus cabelos loiros de loira ingrata

E a mini-saia à Sylvie Vartan

Caminhando como se fizesse amor

Diante dos meus olhos extasiados.

Noite de insónia

E uma ressaca do tamanho do mundo

E uma dor de cabeça do tamanho

Da Via Láctea.

Antimieri diria o Voznesenski

No seu jeito incomum

De dizer as coisas

Que todos pensávamos em segredo

Com medo do castigo de deus.

Antimieri

Para mal dos nossos pecados.

10-5-2020

José Soares Martins (n. 1953)

Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 14-5-2020.

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