Tributo a Little Richard
Tutti Frutti
Muitas vezes te pedi -
era na casa da Rua do Infante -
que pusesses no pick-up o EP do Little Richard,
um dos teus tesouros mais bem guardados -
e que nós, teus amigos ainda imberbes, invejávamos
nessas longas tardes estivais de todos os sonhos,
de todas as viagens impossíveis
que a idade tornava possíveis.
E nunca me negaste - Deus te guarde - tal pedido,
esse bilhete para um breve transe suado e ruidoso,
que auspiciava para nós um mundo tutti frutti -
a wop bop a loo bop a lop bam boom.
Hoje Little Richard baixou os pés e as mãos do piano
e abandonou o palco,
embora a voz e o insano grito permaneçam
como um eco distante e não silenciável,
e embora os motivos blue e crazy, leste-oeste, Sue e Daisy, dois amores
se conservem em formol mas sempre audíveis.
Apetece mentir: mais jovens
do que nunca.
O mundo, esse, é que perdeu o sabor tutti frutti,
giradas cinco décadas em 78 rotações
está amargo o mundo e ácido, insípido às vezes,
como nunca até agora o conhecemos.
9-5-2020
João Pedro Mésseder (n. 1957)
Autor de Fissura, 2000, Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética, 2006, A Doença das Cores seguido de Ilhas de Deus, 2016, E Nele Todo o Sangue se Concentra, 2018, entre outros. Publicado em 14-5-2020.
Noite de insónia...
Noite de insónia. Como Bartolomeu Dias
Dobrei o cabo das Tormentas
Mas num oceano sem esperança.
Os dias tornam-se difíceis
E as raparigas desapareceram
Das ruas.
Agora a tristeza funda dos Outonos
Floresce nesta Primavera em flor
Como se as vespas entrassem
Nas cozinhas atraídas pelas geleias
Da minha mãe.
Morreu o Little Richard
Tudo que é sólido se desvanece
No ar como diria o velho Marx.
Vamos caminhando
Para o olvido como rios
Para o eterno mar.
Com a morte dos outros
Morremos também.
Tenho saudades das minhas antigas
Insónias
Do valium que roubava do cofre
Do meu avô
Das horas implacáveis
Do relógio da Bolsa.
Tudo passa até
A Maria dos Remédios
Com os seus cabelos loiros de loira ingrata
E a mini-saia à Sylvie Vartan
Caminhando como se fizesse amor
Diante dos meus olhos extasiados.
Noite de insónia
E uma ressaca do tamanho do mundo
E uma dor de cabeça do tamanho
Da Via Láctea.
Antimieri diria o Voznesenski
No seu jeito incomum
De dizer as coisas
Que todos pensávamos em segredo
Com medo do castigo de deus.
Antimieri
Para mal
dos nossos pecados.
10-5-2020
José Soares Martins (n. 1953)
Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 14-5-2020.