Poesia & textos afins

Três histórias


Na casa da senhora baronesa só há produtos de marca. De marca é a roupa, o calçado, os chapéus, as malas. Os cães. A água com que os criados de marca regam. Regam as flores de marca da senhora baronesa.

*

Nela tudo excessivo. E o que ao começo era mania, mera mania das grandezas, com o tempo virou realidade. Um dia tropeçou, caiu na cova. Na cova de um dente.
É o que dá andar a passear às escuras.

*

Quando salta faísca e tudo se incendeia, nasce a paixão.
Com ele foi assim. No amor. E na vida profissional: bombeiro.

Augusto Baptista (n.1946)

Autor de contos, "enigmas", fotografia e desenho. Últimos livros publicados: explicação dos gatos com figuras de tangram (2016), ENIgMATÓgRAFO (2016, 2.ª ed.), Gente do Porto (2017), O Lobo Mau no Hospital (2017) e Lacrima (2019). Publicado em 21-7-2021.

Mulher de branco no jardim de Claude Monet (1867)


Aceita a solidão que te oferecem...


Aceita a solidão que te oferecem
Como um vaso sagrado


Aí mergulha fundo a raiz
Colhe a flor se o silêncio florir


Ou antes
Não a colhas
Deixa-a frutificar

Manuel Silva-Terra (n. 1955)

Poeta, tradutor, editor. Últimos títulos publicados: Ser Casa, 2017; Medula, 2019; Hölderlin, 2021. Publicado em 1-6-2021.

Office in a Small City de Edward Hopper (1953)


Só um punhado de areia...

Só um punhado de areia
nas mãos     clepsidra
incessante
fuga calada
do tempo 

Lisboa, 1 de Janeiro de 2018

Bernardette Capelo 

Autora de Ce que mon coeur sait de la semence / O que meu coração sabe da semente (poesia), 2014; Escrito a roxo (conto para a infância), 2017; e também de ensaios: Arte e Natureza na obra de Albano Martins, 2015, entre outros. Publicado em 7-5-2021.

Clepsidra de Vasile Grigore 


A cântaros

Ameaça de chuva
Sem sinal de chuva
Chuva miúda
Chuva ligeira
Chuva fina
Chuva grossa
Aguaceiros dispersos
Chuva forte
Chuva fustigante
Chuva intermitente
Chuva abundante
Raros chuviscos
Chuva constante
Chuva contínua
Chuva torrencial
Chuvadas curtas
Chuvadas breves
Chuva insistente
Chuva persistente
Chuva intensa
Chuva violenta
Chuvada súbita
Um pouco mais de chuva
Chuva molha-todos
Não choveu, embora por várias vezes parecesse que ia chover.

Ana Cláudia Santos (n. 1984) 

Tem-se dedicado à escrita e à tradução de autores como Vico e Leopardi. Doutorada em Teoria da Literatura, exerce actividade profissional como editora numa instituição universitária. Publicado em 14-4-2021.

Rua de Paris; dia de chuva de Gustave Caillebotte (1877)


Os gatos filosofam junto ao aquecedor...

Os gatos filosofam junto ao aquecedor,
De olhos fechados pensam o infinito
Tranquilamente
Como quem não espera mais nada
Do que o paté e os afagos do dono.
La fora o vento
A memória de antigos poemas
E de noites tempestuosas,
O meu pai recém-chegado da pesca
Com o seu velho casacão marítimo
Os olhos ainda cheios de mar
E de noite.
Dói-me o corpo.
Amanhã será mais um dia de pandemia.
Que fazer? Que fazer, Vladimir Ilich Ulianov?
Há muitos anos numa primavera antiga como o mundo
A Vida Mundial sobre a mesa:
Uma crítica cinematográfica ao Requiem por um Rei Virgem
Do Hans-Jürgen Syberberg,
Expressionismo, Murnau, Pabst, Wiene, O Gabinete do Doutor Caligari.
Como tudo passa. Relembro uma tarde em que li
Os Espectros do Ibsen ao som da "Rain Song" dos Zeppelin.
Tantas memórias, tantos fantasmas.


Penso nela na sua nova casa no seu espanto renovado
De quem está a descobrir o mundo.
As utopias sempre inalcançáveis como a nossa própria
Sombra.
Tal como ela eu também olhava com espanto há muitos anos
Nas tardes da eternidade para um mundo imenso
Quando todos eram vivos e a morte
Uma palavra nas bocas de Soares de Passos e de Ferré.


Olho em volta, preciso de uma aspirina urgente,
Tenho a conta a descoberto.
Tal como a minha cama desfeita pelos gatos
Onde um corpo antigo subitamente ainda repousa numa outra vida
Sempre nu, sempre jovem,
De falsa rapariga ingénua a falar de coisas falsamente ingénuas.
Como os textos de Vercors e os cigarros SG gigante,
Como aquela manhã de névoas em que partiu falsamente constrangida
Para nenhures. Um comboio com o cadáver do Brian Jones na mala de viagem.
Amanhã sempre amanhã. Tomorrow and tomorrow and tomorrow
Out out brief candle!
Onde estará o abade da Igreja de Nossa Senhora da Conceição?
Em que cemitério apodrece esse comedor de lampreias?
Passou o vento, os gatos olham-me agora
Com os seus olhos egípcios de divindades
Desterradas
E neles vejo os tempos e os espaços que nunca entendi.
A eternidade é de certeza uma chatice,
A cantilena dos anjos,
O bocejo de Deus
Cheio de gota quase surdo,
Indiferente à gritaria
Do universo, aos gemidos de Auschwitz.
Sim, passou o vento do oeste,
Shelley continua a arder na pira funerária
Em la Spezia.
O meu pai desapareceu mais o seu casacão de pesca
E as galochas da cor da noite. O meu pai e a minha mãe
Mais os seus salmos do rei David ao som das trindades.
Ela continuará falando
Na distância do telefone diante de um rio que já foi meu,
Enquanto a pandemia vai alastrando
E os gatos no seu romantismo negro e gótico
Espreguiçando-se lentamente e acordando
Do seu sono profundo e entrópico,
Enquanto lentamente se vão desmoronando
As pirâmides do Egipto.

                   11-12-2020, 3 h da manhã

José Soares Martins (n. 1953)

Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020). Tem para publicação Ruínas e Bastiões (2021) e é autor de obras na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 24-3-2021.

Procura 2, de Miguel Cameira


A ternura de uma pedra 

Extraio ternura de uma pedra,

raul brandão  

                As pedras não criam bicho: são quase sempre   estéreis.

Já vi   no entanto    uma pedra parir em dois
e exibir    inerte
um pequeno coração húmido
acabado de morrer.


Mas é tão raro
sobreviver a cria ao rigor do parto

como resistir   à doçura
do olhar materno
de uma pedra,
à ternura do hálito
da medusa?   

Rita Taborda Duarte (n. 1973)

Poeta, crítica literária e autora de obra vasta e premiada, na área da escrita para a infância, desde A Verdadeira História de Alice (2004) até Um Hotel de Imensas Estrelas (2019). Últimos títulos de poesia editados: Roturas e Ligamentos (2015) e As Orelhas de Karenin (2019), finalista do Prémio Literário Correntes d'Escritas 2021. Publicado em 8-3-2021. Dia Internacional da Mulher.

Nascimento do Mundo de Joan Miró (1925)


Bagatela

Arranjou um biscate como cliente mistério numa empresa internacional de pagamentos. Tinha de testar três tipos de cartões bancários em trezentas lojas, fazendo em cada uma três compras, e medindo num aparelho que lhe fora fornecido o tempo que cada transacção levava a ser feita. Em cada loja tinha 20 euros para gastar; se gastasse cinco, os 15 restantes ficavam para ele. As coisas também ficavam para ele, e era assim que era pago. Fazendo sempre por comprar as coisas mais baratas, acumulou sacos de bagatelas. No dia em que terminou a tarefa, dispôs no chão da sala tudo o que adquirira. Havia sabonetes, esponjas de banho, velas, colheres de pau, copos, canecas, porta-chaves, molduras, cigarros, embalagens de chá, de massa e de cereais, brinquedos para gato, lenços de pescoço, camisolas, meias, cintos, cartas de jogar, fita métrica de costura, alfinetes, furador, agrafador, lápis de cor, canetas Staedtler de ponta fina made in Germany, cadernos, livros. Uma caixa de cotonetes caiu-lhe das mãos e abriu-se, dispersando no chão os pauzinhos algodoados como peças de Mikado. Fotografou a sala para se lembrar de todas as coisas que comprara e daquele trabalho tão bem pago e misterioso. Na fotografia, o gato fita-o, perplexo, como se não soubesse por onde começar. Ainda tem algumas das coisas, mas já não tem o gato.

01/02/2021 

Ana Cláudia Santos (n. 1984) 

Tem-se dedicado à escrita e à tradução de autores como Vico e Leopardi. Doutorada em Teoria da Literatura, tem exercido atividade profissional como editora numa instituição universitária. Publicado em 12-2-2021.

Charles Robinson, ilustração de Alice's Adventures in Wonderland, de Lewis Carroll (1907)  


As aves têm razão de João Mateus (2012) 

História: as aves têm razão

Leitura do quadro de João Mateus "As aves têm razão",
série "Estórias sem palavras", 2012


Equação:
uma escada, um monumento
um túmulo.
O homem carrega o mundo
para subir alto
no pedestal o que sobra
é a caixa do sono
eterno


as aves não
para morar só querem
a liberdade livre
do azul.

                 Lisboa, 19-10-2015

Bernardette Capelo 

Autora de Ce que mon coeur sait de la semence / O que meu coração sabe da semente (poesia), 2014; Escrito a roxo (conto para a infância), 2017; e também de ensaios: Arte e Natureza na obra de Albano Martins, 2015, entre outros. Publicado em 18-1-2021. 


Três haikus de Ryôkan

Ah se todo o dia
eu me sentisse tão bem
como quando saio do banho.
Uma calma perfeita
numa almofada de erva
longe da minha cabana.
O ladrão levou tudo,
excepto a lua 
que estava na minha janela.

Ryôkan (1758-1831)

Poeta, calígrafo e monge budista-zen japonês. Haikus traduzidos por João Pedro Mésseder a partir do Francês, e incluídos em Paroles du Japon, Albin Michel, 1997 (selecção e tradução de Jean-Hugues Malineau). 

Publicado em 1-1-2021.

Aguarela japonesa


A palavra

Se não houvesse Natal
nestes tempos doentios,
se o nosso sonho de Inverno
se quedasse assim vazio,
que fria seria a estação -
entraria em nós o vento
de gume acerado cortando
a raiz do coração.


Mas corrido um ano mais
eis que o Natal aí está
com suas barbas compridas
e com ele chega a noite
e com ela a estrela-guia,
chegam pastores e Reis-Magos,
gestos sem sombra, memórias
de um certo rosto perdido...


Que a eterna criança chegou
aos homens trazendo a palavra
- em dias de medo do fim
e de esperança interrompida -,
a palavra sem usura
que é liturgia da vida,
da verdade, da justiça, 
da fraternidade vivida.

                Dezembro, 2020

João Pedro Mésseder (n. 1957)

Autor de Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética, 2006, A Doença das Cores seguido de Ilhas de Deus, 2016, E Nele Todo o Sangue se Concentra, 2018, e Companhia (I)limitada, 2020, entre outros. Publicado em 18-12-2020.

Profeta Isaías (det.) 1969 de Marc Chagall. Museu Nacional da Mensagem Bíblica, Nice (França) 


Diante do mar recordo o teu rosto...

Diante do mar recordo o teu rosto
Os teus cabelos ruivos num dia de chuva.
Juramos que nos voltaríamos a encontrar
Depois da morte
Nesta mesma praia agora deserta
Batida pelos ventos do norte.
Onde estão todos?
Onde estão aqueles que conspiravam
Na sombra dos quartéis
Lendo Marx e Sartre às escondidas
Aspirando pelo dia da grande revolução?
Onde estás tu?
Li a tua última carta numa tarde da eternidade
Dizias-te em Boston com um novo namorado
Da idade do Ferlinghetti.
Recordo-te naquele dia de chuva
Em que debaixo de um aguaceiro
Cantámos venturosos
A Serenata à Chuva nas ruas então desertas
Como agora. Se ainda fores viva
Que dirás tu do Trump?
E da pandemia que te assola o país?
E das ruas desertas de Boston?
Ainda tenho comigo
A edição inglesa do Jogo das Contas de Vidro
Do Herman Hesse. Ainda tenho comigo
As tuas fotografias de túnica laranja
E flores no cabelo.
Ainda me lembro
Das rigorosas dietas vegetarianas
Com que me querias converter
Ao perfume de Woodstock
E aos bolinhos dos Hare Krishna em Avinhão.
Agora só o vento atravessa
Estas ruas por onde andámos um dia
A sonhar com revoluções
E barricadas de poemas.
Todos morreram já, Bendsy.
Todos, até aquela comunidade
Planetária que nós vislumbrávamos
Em McLuhan em Marcuse ou Alan Watts.
Que aconteceu?
Nem a voz dos deuses
Nos consegue despertar
Deste pesadelo.

                28 de Junho de 2020 

José Soares Martins

Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado a 07/12/2020

Monge à Beira-mar de Caspar David Friedrich (1810)


Dia Universal dos Direitos da Criança

Em louvor das crianças

Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados - a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso.
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais - a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis - elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue.
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus.

Eugénio de Andrade (1923-2005),

Rosto Precário, Porto: Limiar, 1979, Publicado em 20-11-2020. 

"Liberdade" de Inês Pinto (12 anos)

"Uma borboleta" de Mia Sá Guimarães (9 anos)


Três poemas

              outono

como a tantas outras árvores
ao diospireiro caem as folhas


ficam os ramos despidos
com os frutos pendentes
e redondos
pingando mel

               sol de outono 

declina maduro
gota a gota
cai levemente


inclina-se na tarde
junto dos ramos
perfumados das videiras

               mulher-bonsai


em sapatos pequenos
cresce
com os pés apertados
as raízes podadas

Manuel Silva-Terra (n. 1955)

Poeta, tradutor, editor. Últimos títulos publicados: Canto Chão, 2016; Ser Casa, 2017; Medula, 2019. Publicado em 10-11-2020.

Outono de José Malhoa (1918)


Conselhos a um octogenário deprimido

Na medida do possível, procure espairecer, arejar. Não se feche. Devagarinho, contemplativo, deambule, ande. Faça exercício. Passe os olhos pelas ancas das passantes em passeios demorados, desça e suba devagar os bustos intumescidos das teenagers (tenha cuidado para não escorregar) e espraie-se nos ventres descobertos das senhoras de meia-idade, a exibirem atrevidas tatuagens: bando de passarinhos a debicar-lhes o umbigo. Ou mais abaixo. Depois descanse, para não forçar o coração.

Augusto Baptista (n.1946)

Autor de contos, "enigmas", fotografia e desenho. Últimos livros publicados: explicação dos gatos com figuras de tangram (2016), ENIgMATÓgRAFO (2016, 2.ª ed.), Gente do Porto (2017), O Lobo Mau no Hospital (2017) e Lacrima (2019). Publicado em 20-10-2020.

A sesta de José de Almada Negreiros (1939)



Quatro haikus

Na folha de mansinho
a gota de orvalho
quem a escuta?


*


No cacto o fogo
da flor - fulgor
ou grito?


*


Orgulho de espinhos
no cacto
pele intocada


*


Halo de fogo
afoga-se no poente -
saudade do sol


                 Carcavelos, 9 de Março de 2017

Bernardette Capelo

Autora de Ce que mon coeur sait de la semence / O que meu coração sabe da semente (poesia), 2014; Escrito a roxo(conto para a infância), 2017; e também de ensaios: Arte e Natureza na obra de Albano Martins, 2015, entre outros. Publicado em 7-10-2020.

Aguarela japonesa


      Jogo de sombras

Era um senhor sombrio de quem ninguém sabia o nome, a origem, o que fazia, que ao passar suscitava a dúvida se ia, vinha, de onde para onde, a fazer o quê, se era ele ou a sombra dele, vestida com a roupa dele, a andar com o andar dele, o chapéu dele, ou se essa sombra seria a sombra de uma outra sombra, de uma outra sombra, de uma outra sombra dele.

Augusto Baptista (n.1946)

Autor de contos, "enigmas", fotografia e desenho. Últimos livros publicados: explicação dos gatos com figuras de tangram (2016), ENIgMATÓgRAFO (2016, 2.ª ed.), Gente do Porto (2017), O Lobo Mau no Hospital (2017) e Lacrima (2019). Publicado em 21-9-2020.

Sombras distantes de Victor Zag


Colunatas IV, acrílico s/ tela, 2013 (?), Sofia Pinto Correia

«Colunatas IV»

Vêm   como sombras
do fundo dos tempos
pairam  oraculares
e altivas
figuras de tragédia
em torno da cidade
que as ignora
esquecida
das vozes seculares


só o vento na planície
em seu insondável rumor
as guarda.

Lisboa, 23-05-2015

Bernardette Capelo

Professora, crítica literária, poeta. Autora de Ce que mon coeur sait de la semence / O que meu coração sabe da semente (poesia), 2014; Escrito a roxo (conto para a infância), 2017; e também de ensaios: Arte e Natureza na obra de Albano Martins, 2015, entre outros. Publicado em 9-9-2020.


Verão de 1970

Recordo o teu rosto moreno
Nesse verão de todas as loucuras
A minha camisa dos Porfírios escandalizava
Os transeuntes
E o meu longo cabelo abria o livro
Das transgressões ainda por vir.
Ouvíamos Fleetwood Mac e Jethro Tull
Com a inocência das descobertas.
E os Doors abriam-nos as portas da percepção
Nas caves mal iluminadas
E perfumadas com o nosso suor de adolescentes.
Perdi-te o rasto nesse verão longínquo
Assim como perdi a crença nas coisas mais transcendentes
E na moral ditada nas igrejas fosforescentes de santidade
Mais do que duvidosa.
Ao longe ouviam-se já os estampidos das automáticas
E as explosões surdas dos dilagramas
Por isso dançávamos ao som dos Creedence
E do Serge Gainsbourg como se fôssemos
Já uns condenados à morte
E sonâmbulos caminhássemos para o cadafalso
Nos dias que deveriam ser os mais felizes da nossa vida
Sem esperança e sem horizonte
Em que a França ou a Suécia nos chamavam
Nas noites de insónia e de valium.
Sim perdi-te nesse verão de beijos e masturbações
Em que Setembro significava o fim dos nossos sonhos
De rebeldia imberbe e o regresso
Às marchas militares e aos cânticos patrióticos
Dos liceus onde ouvíamos clandestinos José Afonso
E o Sérgio e o Zé Mário como os profetas
Do apocalipse onde não se distinguiam
As lutas dos operários das flores de Woodstock
Ou a antiga relva de Verdun na voz de Carl Sandburg
Ou de Bob Dylan.
E assim sorríamos aos dias contando o tempo
Antes da fuga ou da ida para as terras mais longínquas
Da nossa desdita.
Nesse Verão desejei-te e contigo mergulhei no Atlântico
Temeroso das águas mas desejoso
Dos teus beijos salgados. Era um virar da página
Era a descoberta das transgressões a leitura
Dos sinais do tempo pois o tempo estava a mudar
E com ele as nossas almas ainda recém-despertadas
Nessa caminhada que se abria como por magia
Sobre o abismo de todos 
Os medos.

                22 de Agosto de 2020

José Soares Martins (n. 1953)

Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 24-8-2020.

O beijo de Gustav Klimt (1907-1908) 


Fiama, trinta ou mais anos corridos


Adolescente eu lera
o expurgado O Aquário
e depois tudo lera ou quase
muitas vezes sem achar
a saída do labirinto...


E agora recordo a chama dócil
atravessando a sala de leitura
pisando em silêncio as nuvens térreas
tão irmã da Lua
naquelas tardes (ela vindo)
mais tranquilas que intranquilas
de antiga luz coada 
na grande Biblioteca.

                                                                                                                                                                      Fiama Hasse Pais Brandão

9-7-2020

João Pedro Mésseder (n. 1957)

Autor de Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética, 2006, A Doença das Cores seguido de Ilhas de Deus, 2016, E Nele Todo o Sangue se Concentra, 2018, e A Quem Pertence a Linha do Horizonte, 2020, entre outros. Publicado em 04-8-2020.


Cotão

Sonhador da noite pênsil,
sonhador do Canto IX,
que vais de imagem em imagem
sobre uma corda de sono,
a cada passo que dás,
deixas coisas para trás:
um fio, um cabelo, um pêlo,
um pedacinho de pele...


Ei-los girando pelo abismo,
minúsculos pontos em chama...
Amanhã hás-de encontrá-los
debaixo da tua cama.                                                                                                            Quarto em Arles (3.ª versão) de Vincent van Gogh (1889) 


Violeta Figueiredo (n. 1947)

Autora de poesia e escritora, várias vezes distinguida, de literatura para a infância e a juventude. Alguns títulos nesta área: Mistérios em Tempo de Aulas, 1991; Fala Bicho, 1992; O Gato do Pêlo em Pé, 1997; Portas, 2008; Portões, 2008. A sua poesia pode ser lida em https://poemas-ineditos-vf.tumblr.com/ e noutros blogues. Publicado em 20-7-2020.


Onze enigmas víricos

Com tanto álcool as mãos não poderão embriagar?

Um mundo de máscaras: comédia ou tragédia?

Quem pôs mais gente a tremer: Napoleão ou o vírus?

Há palco para tanta máscara?

Quanto tempo se aguenta com finado?

Há máscaras S em caras XXL?

Muitos andam de máscara, óculos escuros, luvas, chapéu: para não serem reconhecidos pelos vírus?

Há quem mude de cara, quem nunca mude de máscara?

Corona: pandemia ou pandemónio?

Os bebés vão ser obrigados a nascer de máscara?

Há um tempo A.C., outro D.C.: Antes de Covid, Depois de Covid? 

Augusto Baptista (n.1946)

Autor de contos, "enigmas", fotografia e desenho. Últimos livros publicados: explicação dos gatos com figuras de tangram (2016), ENIgMATÓgRAFO (2016, 2.ª ed.), Gente do Porto (2017), O Lobo Mau no Hospital (2017) e Lacrima (2019), Publica no blogue https://azulcanario.blogspot.com/

Publicado em 13/07/2020

Game Changer de Banksy (2020)


Não tem já o corpo solidão

Não tem já o corpo solidão. A clausura recordemos, a casa consideremos, ouro, papel e vinho. Os canteiros dos vizinhos, junto às grades as hortênsias, claustros de reproduzir gatos. A vigília contra a noite, o uso e a hesitação, indo em sufoco despassarado o tempo. Alvorada ou diana, letargo ou desjejum. De improviso ou de rompante nos esgueiramos para as árvores, com voragem de floresta. Tanto viso, tanta brisa, damos costas a quem passa. Terra murada sem alento, em que excessos a peste pomos, de manso adeus a outra guarida, outro quarto de escrever, latifúndio entre paredes. Sou também as minhas posses, mais cadernos que ditames. Há quem fique, bem atento, há quem vá para narrar. A toada da frase seu intento é. Foi de cal, foi de calçada, a clausura recordamos, a nós consideramos, mais os hábitos que os monges. Foi prisão, foi privilégio, quando muito, outro tanto. Pois sem obrigação vos busco, vos dou conta do que penso. E logo vos desimpeço, a palavra é adeus.

                 3 de julho de 2020

Ana Cláudia Santos (n. 1984)

Tem-se dedicado à escrita e à tradução de autores como Vico e Leopardi. Doutorada em Teoria da Literatura, tem exercido actividade profissional como editora numa instituição universitária. Publicado em 6-7-2020

A poetisa de Marc Chagall (1887 - 1985)


Recordo-te sentada nas escadas...

Recordo-te sentada nas escadas
Da velha casa do Infante
Junto das avencas e dos espargos
Coses as meias do avô
Com um carinho de mãe
Com a dignidade de um anjo
Silenciosa vais operando o milagre
Como quem reza o terço
De Maio ao fim da tarde
Os teus cabelos brancos falam
Do tempo
Em que havia cometas e eclipses
E barricadas nas ruas
A casa permanece silenciosa                                                  
E os espelhos estão cheios
De fantasmas
Quem poderá saber
Da vertigem do tempo?
Do vórtice que como um buraco negro
Engole os dias passados e futuros
Estás viva e no entanto morta
Como num aleph vejo-te longínqua
Nessa brevidade em que coses as meias
Assim tranquila ao fim da tarde
Como se não houvesse mais nada
Para além de ti
Como se a cidade estivesse deserta
Com a febre espanhola
E o avô descesse já a rua das Taipas
Garboso a caminho de casa
Com o Século debaixo do braço
E a cigarreira de prata junto ao coração
Cansado de paludismos e aventuras de África
Como se caminhasse ao teu encontro
Minha avó
Como se se aventurasse assim
Com o cair das aves e dos sinos
A caminho do silêncio
Do universo
Assim de olhos límpidos e claros
A caminho do grande nevoeiro

20-6- 2020, dia dos meus anos

José Soares Martins (n. 1953)

Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 26-5-2020.

Vétheuil no nevoeiro de Claude Monet (1879)


Quatro haikus


Uma rosa rubra

emerge da névoa densa

floresce o silêncio

Ramo no regato

choro de água corrente

voz da natureza

Na orla do caminho

o pelotão de formigas

migração ao sol

À flor do passeio

um lençol de folhas ocres

labareda ruiva

Aguarela de Ha So

José Efe (n. 1960)

Exerceu a docência. É assistente técnico. Como poeta, e destacando livros em que cultiva formas breves, editou No Teu Rosto Quase Ileso (1999), Fenda Acesa (2001), Seiva Rugosa (2006), Tempo Suspenso 37 Haikus (2017), entre outros títulos. Publicado em 18 -5-2020 


Arquipélago de instantes...

Arquipélago de instantes:
de nuvens    de bosque
de magnólia ou faca
cada um se afoga
num mar alto
secreto. Ninguém sabe
a lei que os liga.

                  Lisboa, 6-7-2015

Bernardette Capelo

Professora, crítica literária, poeta. Autora de Ce que mon coeur sait de la semence / O que meu coração sabe da semente (poesia), 2014; Escrito a roxo (conto para a infância), 2017; e também de ensaios: Arte e Natureza na obra de Albano Martins, 2015, entre outros. Publicado em 11-6-2020.

A janela aberta (1921) de Juan Gris


O mundo parou 

repentinamente o mundo para de girar
não tarda nada vou ser projetado no espaço
o vento é uma asa congelada as nuvens carros avariados
o mar não mexe os barcos pasmaram


não há qualquer indício de ti
habitas decerto outro planeta
ou o cárcere longínquo de uma torre vigiada
caíste num pego sem fundo
perdeste a direção o sentido os sentidos se não a própria vida
um raio caiu entre nós olhamo-nos como pedras
a lava de um vulcão envolveu-nos para sempre
um silêncio inaudito brada na via láctea


por favor mexe um dedo a ver se tudo recomeça
por favor pestaneja para que o ar se mova
por favor inventa um sorriso para tudo descongelar
por favor põe os teus cabelos a fabricar mais volutas
para que essas espirais sejam o ovo de um ciclone
o olho de um furacão o eclodir de uma grande catástrofe


sim é urgente uma grande catástrofe
porque é preciso recomeçar tudo de novo
mais que soldar o eixo do planeta
impõe-se colar a recordação à realidade
e porem-nos a girar lado a lado
na mesma órbita

Anthero Monteiro

In Sulcos da Memória e do Esquecimento,

Corpos Editora, 2013 (com prefácio de Maria Helena Padrão)

Poeta, autor de livros para a infância, investigador em literatura e cultura portuguesas e em história local, e divulgador de poesia. Últimos títulos de poesia editados: Sete Vezes Sete Nuvens, 2010, e Sulcos da Memória e do Esquecimento, 2013. Publicado em 3-6-2020.

Edward Hopper, Cape Cod Morning, 1950


Voos (a pedra e o pássaro) 


Nunca caí em pleno voo

talvez porque nunca tenha conseguido voar


Mas conheci pedras que afeiçoadas à mão

e com o impulso certo

subiam mais alto do que muitos pássaros

Talvez se cansassem mais depressa: não tem jeito

nenhum para uma pedra ficar tanto tempo

afastada do chão: uma pedra é uma pedra:

sempre pedra - não é bicho

para se aninhar nos ramos da amoreira a parir um ninho


Tirando isso sempre preferi pedras a pássaros


além do mais se um dia atirarmos um pássaro a uma pedra

ela não nos vem cair aos pés feita um frangalho

de bico e penas       sangrando

de um minúsculo coração. 

Rita Taborda Duarte (n. 1973)

Poeta, crítica literária e autora de obra vasta e premiada, na área da escrita para a infância e a juventude, desde A Verdadeira História de Alice (2004) até Um Hotel de Imensas Estrelas (2019). Últimos títulos de poesia editados: Roturas e Ligamentos (2015) e As Orelhas de Karenin (2019). Publicado em 27-5-2020.

Pessoa atirando uma pedra a um pássaro (1926) de Joan Miró 


Timor (1975)


O primeiro raio de sol

invade o meu corpo

sozinho vagueio nas planícies de Same 

e sonho com a conquista

do Tata-Mai-Lau 

acordo em Maubisse 

rodeado de quatro paredes

prisioneiro da realidade

quero deixar os meus olhos

na caixa postal

esperando as tuas doces palavras

e o Porto aqui tão longe

deixo-me envolver pelo vazio

até ao supremo acto do pôr-do-sol

os dias passam

e só as sombras anunciam

a costa da liberdade

corres ao longe

e desapareces nas águas

apetece-me ser barco

argonauta da música

navegando ao encontro

dos teus braços


14-05-2020

verso 3-  Same - sede de concelho do reinado de Manufahi

verso 5 - Tata-Mai-Lau - pico mais alto da cordilheira Ramelau

verso 6-  Maubisse - posto administrativo do concelho de Same



José Pinto Leite (n. 1951)

Foi actor e dirigente do Teatro Universitário do Porto e exerceu a docência. Em 1975, integrado no exército português, chegou a estar preso em Timor. Como poeta, colaborou em publicações marginais como Off e Avatar, e em revistas como Quebra-Noz e Pé-de-Cabra. Em co-autoria, editou os livros Ménage à Trois (2011) e Bicho-da-seda (2020). Publicado em 20-5-2020.

Maubisse. Timor


Tutti Frutti

Muitas vezes te pedi -

era na casa da Rua do Infante -

que pusesses no pick-up o EP do Little Richard,

um dos teus tesouros mais bem guardados -


e que nós, teus amigos ainda imberbes, invejávamos

nessas longas tardes estivais de todos os sonhos,

de todas as viagens impossíveis

que a idade tornava possíveis. 


E nunca me negaste - Deus te guarde - tal pedido,

esse bilhete para um breve transe suado e ruidoso,

que auspiciava para nós um mundo tutti frutti -

a wop bop a loo bop a lop bam boom.


Hoje Little Richard baixou os pés e as mãos do piano

e abandonou o palco,

embora a voz e o insano grito permaneçam

como um eco distante e não silenciável,


e embora os motivos blue e crazy, leste-oeste, Sue e Daisy, dois amores

se conservem em formol mas sempre audíveis. 

Apetece mentir: mais jovens

do que nunca.


O mundo, esse, é que perdeu o sabor tutti frutti,

giradas cinco décadas em 78 rotações

está amargo o mundo e ácido, insípido às vezes,

como nunca até agora o conhecemos.   

9-5-2020

João Pedro Mésseder (n. 1957)

Autor de Fissura, 2000, Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética, 2006, A Doença das Cores seguido de Ilhas de Deus, 2016, E Nele Todo o Sangue se Concentra, 2018, entre outros. Publicado em 14-5-2020.



Noite de insónia...


Noite de insónia. Como Bartolomeu Dias

Dobrei o cabo das Tormentas

Mas num oceano sem esperança.

Os dias tornam-se difíceis

E as raparigas desapareceram

Das ruas.

Agora a tristeza funda dos Outonos

Floresce nesta Primavera em flor

Como se as vespas entrassem

Nas cozinhas atraídas pelas geleias

Da minha mãe.

Morreu o Little Richard

Tudo que é sólido se desvanece

No ar como diria o velho Marx.

Vamos caminhando

Para o olvido como rios

Para o eterno mar.

Com a morte dos outros

Morremos também.

Tenho saudades das minhas antigas

Insónias

Do valium que roubava do cofre

Do meu avô

Das horas implacáveis

Do relógio da Bolsa.

Tudo passa até

A Maria dos Remédios

Com os seus cabelos loiros de loira ingrata

E a mini-saia à Sylvie Vartan

Caminhando como se fizesse amor

Diante dos meus olhos extasiados.

Noite de insónia

E uma ressaca do tamanho do mundo

E uma dor de cabeça do tamanho

Da Via Láctea.

Antimieri diria o Voznesenski

No seu jeito incomum

De dizer as coisas

Que todos pensávamos em segredo

Com medo do castigo de deus.

Antimieri

Para mal dos nossos pecados.

10-5-2020

José Soares Martins (n. 1953)

Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia. Publicado em 14-5-2020.


Noite de Primavera...


Noite de Primavera

o perfume da flor de laranjeira

põe um véu de noiva na Lua

Manuel Silva-Terra (n. 1955)

Últimos títulos publicados: Canto Chão, 2016; Ser Casa, 2017; Medula, 2019. Também tradutor e editor. Publicado em 9-5-2020.


Aquarela de Koson (1910)


Porcelana


Já bebi canja por chávenas,
há chávenas que aturam tudo:
gelo, quentura, pires sujos,
vitrinas, pevides, gripes,
lágrimas, baba em canudo,
tudo,
à espera do dia-não
em que nos caiam ao chão.

Violeta Figueiredo (n. 1947)

Autora de poesia e escritora, várias vezes distinguida, de literatura para a infância e a juventude. Alguns títulos nesta área: Mistérios em Tempo de Aulas, 1991; Fala Bicho, 1992; O Gato do Pêlo em Pé, 1997; Portas, 2008; Portões, 2008. A sua poesia pode ser lida em https://violetafigueiredo.blogspot.com/ e noutros blogues.

Publicado em 3-5-2020.

A chávena de chá (1898) de Columbano Bordalo Pinheiro 


             1.º DE MAIO, DIA DO TRABALHADOR


A minha liberdade     


vós os que procurais em vão a justiça
vós os que interrogais os céus inutilmente
vós olhos doridos de desilusão
tomai a minha liberdade


vós que ainda não tivestes a vossa hora
vós que ainda não divisastes a terra prometida
vós que sois espoliados até da vossa esperança
tomai a minha liberdade


tomai-a nas mãos com amor religioso
é tudo o que possuo - e é tão pouca
é diminuta como uma semente
mas é como semente que eu a quero


é pela semente que aquele campo é uma seara
é pela semente que a foice desce ao trabalho
é pela semente que nesta mesa há pão


abdico desta semente
e na hora em que poderia usá-la
podeis lançá-la ao campo de batalha
para que dê fruto e vos sacie


bom é que morra no aceso do combate
como morrem todas as sementes
para ressurgir em libertação

1974

Anthero Monteiro (n. 1946)

Poeta, autor de livros para a infância, investigador em literatura e cultura portuguesas e em história local, pedagogo e divulgador de poesia. Últimos títulos de poesia editados: Sete Vezes Sete Nuvens, 2010, e Sulcos da Memória e do Esquecimento, 2013.

Publicado em 1-5-2020.

Cartoon de João Abel Manta 


Que límpidas as águas de Veneza...


Que límpidas as águas de Veneza

Que silêncio nas ruas de Londres

Que ar puro nos boulevards de Paris

Parece que finalmente o homem entendeu

Parece que finalmente os pássaros e as árvores

Conquistaram a terra

É primavera e o cheiro dos morangos inebria

Os viandantes

Mas onde estão eles os viandantes

Onde estão os derradeiros poetas

Do impossível?

O fantasma de Blake caminha nas avenidas desertas

E o fogo dos tigres caminha com ele

E com Borges mais o seu Aleph

Até as guerras subitamente silenciaram

Os seus canhões de séculos

Terão chegado os tempos da segunda vinda?

Estará Jesus de novo entre nós

Com o seu olhar límpido e transfigurado

De amor pelos homens?

Estaremos nós nos tempos finais?

Onde estão as multidões?

Onde estão os profetas?

Para onde foram os sacerdotes de todos os templos?

E os chefes incontestados e os generais e os almirantes?

Para onde foram as esquadras e os exércitos?

Que oculto desígnio operou o milagre?

No cosmos as estrelas continuam brilhantes

E a lua voltou a ser de novo uma inspiração para os amantes

Que bom termos acedido finalmente ao toque de Midas

Ao velho sonho dos alquimistas

Nicolas Flamel pode repousar descansado

E Nostradamus e o Bandarra

Tudo o que tocamos

Se transforma não em oiro mas em pedra!

Bem-vindos ao reino da Medusa!

29-3-2020

José Soares Martins (n. 1953)

Escritor e professor universitário. Co-autor de Setembro (1984), Ménage à Trois (2011), Bicho-da-seda (2020) e de obras e artigos na sua área de investigação, a psico-sociologia.

Publicado em 29-4-2020

San Giorgio Maggiore at Dusk or Sunset in Venice (1908). Claude Monet


25 de Abril de 1974


Pela manhã ruíra o tempo conhecido
tempo de outrem
vagaroso como um verme.


Já as vozes desmancham o silêncio
o mais simples já pousa as mãos rugosas
numa folha em branco e sem delonga
escreve os dias sublevados.


E com a impaciência de dois corpos
no leito da noite interminável
principia então
o tempo sem medida.

João Pedro Mésseder (n. 1957)

Gazeta Literária, n.º especial (Começar de Novo), 2004, p. 6. Título inicial: "Memória".
Publicado em 24-4-2020.



"Grândola, vila morena", a canção símbolo do 25 de Abril,

do grande poeta-compositor-cantor, que foi José Afonso. 

A Poesia está na Rua (1974). Vieira da Silva


                    DIA MUNDIAL DO LIVRO 2020

Se os bibliotecários fossem honestos


"um livro desencaminhou-me por vezes do meu trabalho..."

Benjamin Franklin


Se os bibliotecários fossem honestos,

não sorririam, nem poriam um ar

de boas-vindas. Diriam:

Tens de ser cuidadoso. Aqui

há monstros. Diriam:

Estas salas albergam pagãos

e heréticos, assassinos e

maníacos, os iludidos, desesperados

e devassos. Diriam:

Estes livros contêm conhecimento

sobre morte, desejo e decadência,

traição, sangue e mais sangue;

cada um é uma caixa de Pandora, por isso

porque haverias de querer abrir um deles?

Colocariam sinais de

perigo avisando que o contacto

pode degenerar em mudança de humor,

modificações drásticas de visão

e efeitos perturbadores da mente.

Se os bibliotecários fossem honestos,

admitiriam que as pilhas de livros

podem ser mais sedutoras e

chocantes do que pornografia. Afinal,

quando já viste alguns

seios, vaginas e pénis,

mais é apenas mais,

uma banalidade reconfortante,

mas as prateleiras de uma biblioteca

contêm novidades sensacionais,

uma mistura escandalosa e permissiva

de Malcom X, Marx, Melville,

Merwin, Millay, Milton, Morrison,

e qualquer um as pode requisitar

levando-as para casa ou para algum canto

onde pode ser desencaminhado

e impregnado por ideias.

Se os bibliotecários fossem honestos,

Diriam: Ninguém

passa tempo aqui sem sofrer

uma mudança. Talvez devesses

ir para casa. Enquanto ainda podes.

Joseph Mills 

Poeta e professor universitário norte-americano. Último título publicado: Bleachers: Fifty-Four Linked Fictions, 2019. 

Tradução: Miguel Ramalhete Gomes.

https://www.libraryasincubatorproject.org/wp-content/uploads/2012/09/Mills_If_Librarians_Were_Honest.pdf

(16-12-2015). Publicado em 23-4-2020.

Duas meninas a ler (1934) Picasso


Errata 2

Onde se lê bala, leia-se halo.

Onde se lê cela, leia-se tela.

Onde se lê cacto, leia-se gato.

Onde se lê triste, leia-se chiste.

Onde se lê gelo, leia-se pêlo.

Onde se lê dobra, leia-se sobra.

Onde se lê furto, leia-se fruto.

Onde se lê grito, leia-se trilo.

Onde se lê meu, leia-se teu.

Onde se lê bruma, leia-se rumo.

João Pedro Mésseder (n. 1957)

Autor de Fissura, 2000, Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética, 2006, A Doença das Cores

seguido de Ilhas de Deus, 2016, E Nele Todo o Sangue se Concentra, 2018, entre outros.

Publicado em 20-4-2020.

O gato e o pássaro (1928) de Paul Klee 

Um casal de melros...


Um casal de melros

está a fazer ninho no quintal

ele tem só a porta do céu.


Manuel Silva-Terra (n. 1955)

Últimos títulos publicados: Canto Chão, 2016; Ser Casa, 2017; Medula, 2019. Também tradutor e editor.  Publicado em 16-4-2020


O discurso sobre a paz



No final de um discurso extremamente importante
o grande homem de Estado, estrebuchante
com uma bela frase furada
fica hesitante
e desampara a bocarra escancarada
resfolegante
mostra os dentes
e a cárie dentária de seu raciocínio pacificante
deixa exposto o nervo da guerra
a delicada questão do montante.

Guerra e Paz de Cândido Portinari (1952-1956)

Le discours sur la paix

Vers la fin d'un discours extrêmement important
le grand homme d'Etat trébuchant
sur une belle phrase creuse
tombe dedans
et désemparé la bouche grande ouverte
haletant
montre les dents
et la carie dentaire de ses pacifiques raisonnements
met à vif le nerf de la guerre
la délicate question d'argent. 

Jacques Prévert (1900-1977), Paroles (1946). Tradução de Adriano Scandolara

https://escamandro.wordpress.com/2012/05/15/6-poemas-de-jacques-prevert/ Publicado em 15-4-2020


Que dizer deste silêncio das ruas...

Que dizer deste silêncio das ruas

Deste estar vivo atrás das janelas

Deste isolamento irmão da peste negra

Das gafarias dos hospícios?

As paredes abrem-se em brechas de noite

E nos espelhos os mortos ressuscitam

Como sombras ao anoitecer

Torna-se difícil caminhar nas ruas

E no entanto é primavera

E no entanto as flores desabrocham

E no entanto os morangos são de novo possíveis

Os morangos e as primeiras abelhas

Parece que a natureza nos volta as costas e sorri

Para os anjos que invisíveis olham os nossos passos

Do alto das torres

Onde os morcegos e as corujas indiferentes aos dramas dos homens

Seguem os raios da lua essa peregrina dos céus

E os céus vivem sem nós

E o cosmos vive sem nós

E o tempo vive sem nós

E não há um poeta que se levante e que "dê o coração ao mundo"

Porque o mundo não precisa mais dele.

27 de março de 2020

José Soares Martins (n. 1953)


Sobre o lado esquerdo 

Repouso na mesa de Júlio Pomar

De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável. 

No segundo caso, o homem que não dorme pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração».

Carlos de Oliveira (1921-1981)

Sobre o Lado Esquerdo, Dom Quixote, 1968, p. 6.


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